Outras leituras
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Ao longo das leituras, algumas passagens sempre deixam marcas, importantes no momento e que continuam a reverberar. Não são lições de vida, nada disso. Sequer concordo com todas elas. São trechos de alguns livros lidos e que fazem pensar usando a beleza, o raciocínio refinado, e provocam aquela pausa admirativa. Se “ler” tem relação com “escolher” e “colher”, uma seção de excertos parece fazer sentido.
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1. “A cidade se embebe como uma esponja dessa onda que reflui das recordações e se dilata” (Italo Calvino, em As cidades invisíveis)
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2. “O olhar percorre as ruas como se fossem páginas escritas” (Italo Calvino, em As cidades invisíveis)
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3. “Assumo a minha fraqueza como assumo as minhas tripas” (Virgílio Ferreira, em Aparição)
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4. “O sonho, o alarme, o mistério, a presença de nós a nós próprios, a interrogação, o mundo submerso da nossa intimidade – tudo era da vida real, da matéria de que eram feitas as pedras e os cardos” (Virgílio Ferreira, em Aparição)
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5. “Eu, porém, não sabia se o entendia bem, porque era possível que eu entendesse nele só o que sabia de mim” (Virgílio Ferreira, em Aparição)
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6. “Pregava-te a vida, mas a vida iluminada até as suas últimas raízes. Ver não era um erro. O que aconteceu é que nem todos os olhos aguentam: a cegueira que aí nasce vem dos olhos, não da verdade” (Virgílio Ferreira, em Aparição)
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7. “Tu julgas que o velho Deus e a violência estúpida da morte e o milagre da vida nunca entraram nas minhas contas. Entraram. Mas agora são como animais familiares. Durmo bem no meio deles” (Virgílio Ferreira, em Aparição)
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8. “Mas, se através dos tempos o homem pensasse apenas na utilidade prática, hoje não seria um homem, seria um parafuso. De resto, os utilitários estão lutando contra si: conquistada a base prática, liquidados, em hipótese, os problemas de bem-estar, forçada toda a azáfama ao silêncio, eis que as flores da solidão, da asfixia, brotarão com a sua virulência clandestina da miséria do homem: a vida estará então toda ela por conquistar, desde o limiar das origens” (Virgílio Ferreira, em Aparição)
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9. “Abandonarei o mar, o mar, para vir me afogar dessa maneira no pântano da vida comum” (Luigi Pirandello, em Vestir os nus)
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10. “Servir… obedecer… não poder ser nada… Um uniforme de trabalho, já gasto, que todas as noites se pendura num prego na parede. Deus, que coisa angustiante, sentir que ninguém no mundo pensa em nós” (Luigi Pirandello, em Vestir os nus)
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11. “Ainda muito jovem, compreendo que os homens se fortalecem pela capacidade de não ver. Não ver, não sentir, não pensar: isso é a força” (José Castello, em Ribamar)
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12. “Esse homem diz coisas maravilhosas, mas não sabe o que diz” (Kafka a Max Brod, sobre um sujeito chamado Fanta Bentrano, em Ribamar, de José Castello)
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13. “José, o apagado. É o padroeiro dos artistas. Faz sentido. O artista é aquele que se esquiva para ceder lugar a outro. Anula-se para ser” (José Castello, em Ribamar)
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14. “Literatura. Único reduto da linguagem em que errar é acertar” (José Castello, em Ribamar)
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15. “Algumas pessoas têm sorte, outros não. Toda a biografia é uma questão de chance e, a partir do momento da concepção, a sorte – a tirania da contingência – comanda tudo. Acredito que era a isso que o Sr. Cantor se referia ao condenar o que chamava de Deus” (Philip Roth, em Nêmesis)
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16. “Queremos apenas ajudá-los – diz o velho. – Por que isso seria humilhante? Nada é humilhante, se não quiserem que seja” (Marie Ndiaye, em Coração apertado)
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17. “O que há então que não devo ver de jeito nenhum? (…) Não sabe que sempre quis saber o mínimo possível do que me assusta?” (Marie Ndiaye, em Coração apertado)
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18. “Todo esforço de amizade ou de paz com o inimigo é interpretado como uma fraqueza” (Marie Ndiaye, em Coração apertado)
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19. “Mas tudo se ajeita amanhã. Amanhã o sol vai ser propício, vai dar vontade de trabalhar. Porém, é hoje que o tempo passa (…), amanhã ainda não passou” (Dino Buzzati, em Barnabo das montanhas)
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20. “Todo o lar em que as paixões atacaram os homens com violência enche-se dessa substância tenebrosa” (Sándor Márai, em As brasas)
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21. “Era como se todas as coisas velhas e mofadas, enterradas há tempos nos corações humanos, recomeçassem a viver, como se no coração de cada criatura se aninhasse um ritmo mortal que, em dado momento da vida, poderia começar a pulsar com violência implacável” (Sándor Márai, em As brasas)
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22. “Em toda relação de poder sempre existe um leve, quase imperceptível desprezo por quem dominamos. Só somos capazes de dominar totalmente o outro se conseguimos conhecer, entender e desprezar com grande tato aquele que terá de se dobrar a nós” (Sándor Márai, em As brasas)
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23. “Era como se de repente os objetos tivessem adquirido um sentido, como se quisessem demonstrar que cada coisa no mundo só possui um significado em relação aos homens, e só quando se torna parte integrante do destino deles, e de suas ações” (Sándor Márai, em As brasas)
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24. “Às perguntas mais importantes sempre terminamos respondendo com nossa vida. O que dizemos nesse meio tempo não tem importância, nem os termos e argumentos com que nos defendemos. No final de tudo, é com os fatos de nossa vida que respondemos às indagações que o mundo nos faz com tanta insistência” (Sándor Márai, em As brasas)
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25. “… o significado sagrado e simbólico do ato de matar, e inclusive seu significado erótico oculto” (Sándor Márai, em As brasas)
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26. “Nós também assassinamos, mas de maneira mais complicada, segundo as normas prescritas ou autorizadas pela lei. Matamos em defesa de ideais sublimes e de bens humanos preciosos, matamos para proteger as regras da convivência humana (Sándor Márai, em As brasas)
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27. “Mas sangue é sujeira?… Não creio. É a matéria mais nobre que existe no mundo: toda vez que o homem sentiu necessidade de comunicar ao seu deus algo de grandioso, inefável, sempre o fez oferecendo-lhe um sacrifício de sangue” (Sándor Márai, em As brasas)
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28. “Pois o coração humano também tem a sua noite, cheia de emoções não menos selvagens que o instinto de caça que atormenta o coração do cervo macho ou do lobo” (Sándor Márai, em As brasas)
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29. “Mas no fundo da alma ocultava um impulso espasmódico: o desejo de ser diferente do que era. É o tormento mais cruel que o destino pode reservar ao homem. Ser diferente do que somos, de tudo o que somos, é o desejo mais nefasto que pode queimar num coração humano. Pois a única maneira de suportar a vida é se conformar em ser o que somos aos nossos olhos e aos do outro (…). Devemos suportar a traição e a infidelidade, e sobretudo a coisa que nos parece mais intolerável: a superioridade intelectual e moral do outro” (Sándor Márai, em As brasas)
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30. “Só mais tarde compreendi que quem se refugia com tanta veemência na sinceridade é porque tem medo: medo de se encontrar um dia com a vida carregada de segredos inconfessáveis” (Sándor Márai, em As brasas)
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31. “no fundo dessa felicidade também percebo uma espécie de angústia. Tudo é belo demais, sem nenhuma rachadura, perfeito. Uma felicidade tão conforme a todas as regras sempre dá medo” (Sándor Márai, em As brasas)
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32. “Os homens contribuem para o próprio destino, determinam certos fatos que vão acontecer com eles. Chamam o destino, apertam-no contra si e não se separam mais dele. Agem desse modo mesmo sabendo desde o início que esses atos terão resultados nefastos. O homem e seu destino se realizam reciprocamente, moldando-se um no outro” (Sándor Márai, em As brasas)
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33. “Por isso tenho horror à música (…). Odeio essa linguagem melodiosa e incompreensível que permite a certas pessoas comunicarem com desenvoltura coisas vagas, insólitas” (Sándor Márai, em As brasas)
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34. “Um dia você acorda e esfrega os olhos e não sabe mais por que acordou” (Sándor Márai, em As brasas)
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35. “O homem compreende o mundo um pouco de cada vez, e depois morre” (Sándor Márai, em As brasas)
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36. “Sim, teria sido mais decente, mais humano, que uma bala resolvesse o que o tempo não soube resolver” (Sándor Márai, em As brasas)
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37. “E isso porque cinquenta anos são mais do que suficientes, pensei. Nós nos tornamos vis quando ultrapassamos os cinquenta e continuamos vivendo, existindo. Somos covardes atravessadores de fronteiras, pensei, que nos fazemos duplamente deploráveis quando passamos dos cinquenta. Agora sou o desavergonhado, pensei. Senti inveja dos mortos. Por um momento, odiei-os por sua superioridade” (Thomas Bernhard, em O náufrago)
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38. “Os pais sabem muito bem que em seus filhos dão continuidade à desgraça que eles próprios são; agem com crueldade ao fazer os filhos e lançá-los na máquina da existência” (Thomas Bernhard, em O náufrago)
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39. “Meu desejo era ficar sentado na igreja até cair morto, disse. Mas não consegui, nem mesmo me concentrando totalmente no meu desejo” (Thomas Bernhard, em O náufrago)
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40. “Mas as pessoas simples não entendem as complicadas” (Thomas Bernhard, em O náufrago)
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41. “Era a infelicidade humana que o fascinava; não eram os homens em si que o atraíam, mas sua infelicidade, e esta podia ser encontrada onde quer que existissem seres humanos” (Thomas Bernhard, em O náufrago)
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42. “Na teoria, nós entendemos as pessoas, mas na prática não as suportamos, pensei; na maioria das vezes, nos relacionamos com elas apenas a contragosto e as tratamos sempre do nosso ponto de vista” (Thomas Bernhard, em O náufrago)
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43. “O trato com os livros exige certo sedentarismo, certo nível indispensável de aburguesamento” (Roberto Bolaño, em Estrela distante)
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44. Era “como se por trás dos olhos existisse um outro par de olhos” (Roberto Bolaño, em Estrela distante)
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45. “Esta é a minha última transmissão a partir do planeta dos monstros. Não mergulharei nunca mais no mar de merda da literatura. De agora em diante, escreverei meus poemas com humildade e trabalharei para não morrer de fome e não tentarei publicar nada” (Roberto Bolaño, em Estrela distante)
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46. “Quem sonha sempre acorda antes do seu desenlace, como se o impulso onírico se esgotasse na representação dos pormenores e se desinteressasse pelo resultado, como se a atividade de sonhar fosse a única ainda ideal e sem objetivo” (Javier Marías, em O homem sentimental)
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47. Sobre o casamento: “não consanguíneos que se atrevem a se ver diariamente” (Javier Marías, em O homem sentimental)
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48. “Vai se sentar num caixote virado. Verá a silhueta das montanhas. Estrelas. A luz bruxuleante das janelas. Um estúpido sinal de trânsito mais e mais uma vez a amarelecer avermelhar esverdear ali sem qualquer finalidade. Longínquos latidos de cães e um leve cheiro de esgoto. Por que escrever sobre todas essas coisas? Elas existem e continuarão a existir quer você escreva sobre elas quer não, quer você esteja aqui quer não esteja” (Amós Oz, em Rimas da vida e da morte)
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49. “Uma das missões da literatura era às vezes destilar da miséria e do sofrimento ao menos uma pitada de consolo ou um pequeno lampejo de benevolência” (Amós Oz, em Rimas da vida e da morte)
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50. A ideia de que o universo tem um propósito pode ser perigosa: “‘Propósito’ invoca imagens de fanatismo. Uma vez que as pessoas se convencem de que foram postas na Terra para servir como instrumento em algum plano divino, parece não haver limite para as monstruosidades que elas estão dispostas a cometer para executar esse plano” (Robert L. Parker, em Superstição – crenças na era da ciência)
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51. “Quanto mais o universo parece compreensível, mais ele parece não ter sentido” (Steven Weinberg, apud. Robert L. Parker, em Superstição – crenças na era da ciência)
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52. Dúvidas sobre o poder da oração: “Saber quem é essa divindade importa? Importa se a oração é feita de joelhos? Será que a prece dirigida a um cavalo, no hipódromo, obtém a mesma atenção divina de uma oração pela paz mundial?” (Robert L. Parker, em Superstição – crenças na era da ciência)
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53. “O impulso sexual humano foi moldado pela evolução para assegurar a procriação, e isso funciona extraordinariamente bem. Com os desencadeadores corretos, praticamente todo o mundo, incluindo os presidentes dos Estados Unidos e proeminentes líderes religiosos arriscará tudo por um encontro sexual proibido” (Robert L. Parker, em Superstição – crenças na era da ciência)
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54. “Faça essa pergunta a você mesmo. Nós temos que ser humanos pra sempre? A consciência se esgotou. Agora é voltar pra matéria inorgânica. É isso que nós queremos. Queremos ser pedras num campo” (Don Delillo, em Ponto Ômega)
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55. “Seu olhar parecia encurtado, não chegava até a parede ou a janela. Olhar para ela me perturbava, por saber que ela não se sentia observada. Onde estaria ela? Não estava imersa em pensamentos nem lembranças, não estava planejando a próxima hora nem o próximo minuto. Estava ausente, tensamente imobilizada por dentro” (Don Delillo, em Ponto Ômega)
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56. “Todo o momento perdido é a vida” (Don Delillo, em Ponto Ômega)
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57. “Você entende, não é uma questão de estratégia. Não estou falando em segredos, em mentiras. Estou falando em ser você mesmo. Se você revela tudo, cada sentimento, pedindo compreensão, você perde uma coisa crucial pra sua autoconsciência. Você tem que saber coisas que os outros não sabem. É o que ninguém sabe sobre você que permite que você se conheça” (Don Delillo, em Ponto Ômega)
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58. “Eram pessoas normais até o ponto em que se pode ser normal sem deixar de ser normal” (Don Delillo, em Ponto Ômega)
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59. “Não era o tipo de criança que precisava de um amigo imaginário. Ela mesma era imaginária para si própria” (Don Delillo, em Ponto Ômega)
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60. “Quantos começos até que você veja a mentira que há no seu entusiasmo? (…) Estaremos aqui tal como estão as moscas e os ratos, localizados, sem ver e sem saber nada senão aquilo que a nossa natureza acanhada permite” (Don Delillo, em Ponto Ômega)
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61. “Se meus pais descobriam que algum membro do seu círculo social nutria sentimentos religiosos clandestinos, eles passavam a destinar-lhe o tipo de piedade normalmente reservada àqueles diagnosticados com uma doença degenerativa e nunca mais seriam persuadidos a considerar aquela pessoa seriamente” (Alain de Botton, em Religião para ateus)
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62. “Estamos fartos de ser deixados à vontade para fazer o que quisermos sem dispor de sabedoria suficiente para explorar nossa liberdade” (Alain de Botton, em Religião para ateus)
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63. “Se tendemos a pensar com tanta frequência em desinfetantes com fragrância de limão ou batatinhas onduladas, mas dedicamos pouco tempo à tolerância ou à justiça, a culpa não é somente nossa. É porque, em geral, essas duas virtudes cardinais não se encontram em posição de se tornar clientes da agência de publicidade Young & Rubicom” (Alain de Botton, em Religião para ateus)
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64. “Nós nos sentimos culpados por tudo o que ainda não lemos, mas deixamos de notar que já lemos muito mais que Agostinho ou Dante, ignorando, desse modo, que o problema está sem dúvida em nossa maneira de assimilar, não na extensão de nosso consumo” (Alain de Botton, em Religião para ateus)
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65. “A contenção como base para a imersão” (Alain de Botton, em Religião para ateus)
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66. “O ponto apropriado não é se a Virgem existe, mas o que nos diz sobre a natureza humana o fato de tantos cristãos, ao longo de dois mil anos, sentirem vontade de inventá-la” (Alain de Botton, em Religião para ateus)
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67. “Em contraste com a religião, o ateísmo é propenso a parecer friamente impaciente com a nossa carência” (Alain de Botton, em Religião para ateus)
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68. “No fervor de atacar crentes cujas fragilidades os levaram a abraçar o sobrenatural, os ateus podem negar a fragilidade, que é uma característica inevitável da nossa vida. Podem rotular como infantis necessidades particulares que, na verdade, deveriam ser enaltecidas como humanas, pois não existe maturidade sem uma negociação adequada com o infantil e tampouco um adulto que, regularmente, não anseie ser confortado como uma criança” (Alain de Botton, em Religião para ateus)
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69. “Somos jogados na tristeza não tanto pela negatividade, mas pela esperança. É a esperança – em relação à carreira, à vida amorosa, aos filhos, aos políticos, ao planeta – que deve ser primariamente culpada por nos enfurecer e amargar” (Alain de Botton, em Religião para ateus)
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70. “Essa não é uma posição pela qual o mundo moderno revela muita solidariedade, pois uma das características dominantes do mundo, e certamente seu maior defeito, é o otimismo” (Alain de Botton, em Religião para ateus)
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71. “Uma visão de mundo pessimista não precisa envolver uma vida desprovida de alegria. Os pessimistas podem ter uma capacidade muito maior de apreciação que os otimistas, porque nunca esperam que as coisas deem certo e, assim, podem se surpreender pelo modesto sucesso que ocasionalmente cruza seus horizontes sombrios. Os otimistas seculares contemporâneos, por outro lado, com seu senso de prerrogativas bem desenvolvido, em geral não conseguem saborear nenhuma epifania da vida cotidiana enquanto se ocupam da construção do paraíso terreno (Alain de Botton, em Religião para ateus)
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72. “Em vez de tentar corrigir as humilhações insistindo na nossa importância equivocada, deveríamos tentar aprender e apreciar nossa insignificância essencial” (Alain de Botton, em Religião para ateus)
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73. “As avaliações pouco solidárias que fazemos de outras pessoas em geral são resultado de nada mais que o hábito sinistro de olhar para eles de maneira errada, através das lentes embaçadas pela distração, pela exaustão e pelo medo, o que nos cega para o fato de que são, na verdade e apesar de mil diferenças, apenas versões alteradas de nós mesmos: seres frágeis, inseguros e imperfeitos que também desejam amor e têm uma necessidade urgente de perdão” (Alain de Botton, em Religião para ateus)
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74. “Independente do que as democracias modernas possam dizer a si mesmas sobre seu compromisso com a liberdade de expressão e com a diversidade de opiniões, os valores de uma sociedade corresponderão àqueles das organizações que podem pagar por anúncios de trinta segundos durante os telejornais noturnos” (Alain de Botton, em Religião para ateus)
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75. “Aqueles de nós que não têm religião nem crenças sobrenaturais ainda precisam de encontros regulares e ritualizados com conceitos como amizade, comunidade, gratidão e transcendência. Não podemos depender de nossa capacidade de chegar a eles sozinhos” (Alain de Botton, em Religião para ateus)
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76. “Alguns milênios fazem maravilhas para dar credibilidade a uma ideia extravagante” (Alain de Botton, em Religião para ateus)
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77. “As religiões são intermitentemente úteis, eficazes e inteligentes demais para ser deixadas somente para os religiosos” (Alain de Botton, em Religião para ateus)
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78. “Numa sala branca silenciosa com piso de concreto polido quase qualquer coisa pode parecer arte” (Michael Cunningham, em Ao anoitecer)
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79. “O único destino pior do que continuar juntos seria cada um deles tentar viver sozinho” (Michael Cunningham, em Ao anoitecer)
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80. “Ah, homenzinho, você derrubou a casa não por paixão, mas por negligência. Você, que ousou pensar em si mesmo como alguém perigoso. Você é culpado não da épica transgressão, mas de crimes minúsculos. Você fracassou do jeito mais baixo e humano: você não imaginou a vida dos outros” (Michael Cunningham, em Ao anoitecer)
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81. “Não há ninguém lá para ver isso. O mundo está fazendo o que sempre faz, demonstrando-se para si mesmo. O mundo não tem nenhum interesse em pequenas figuras que vão e vêm, os fantasmas que se preocupam e veneram, que rastelam os caminhos de cascalho e constroem um fortuito jardim de rochas, o menino-homem de bronze, a taça marchetada em cujo interior a neve vai cair” (Michael Cunningham, em Ao anoitecer)
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82. “Como eu seria feliz se fosse feliz” (Woddy Allen)
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83. “Só se espera o que não se tem. Quando alguém espera ser feliz é que a felicidade está ausente. Quando ela está presente, ao contrário, o que lhe resta esperar?” Para que ter esperança? Melhor ser um desesperado feliz! “A felicidade? Seria ter o que desejamos. Mas como, se o desejo é carência? Se só desejamos o que não temos, nunca temos o que desejamos. Eis-nos separados da felicidade pela própria esperança que a persegue”. Enfim, como diz o Samkhya Sutra, “somente o desesperado é feliz porque a esperança é a maior tortura, e o desespero a maior felicidade” (André Comte-Sponville, em O espírito do ateísmo)
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84. “O homem não é entranhadamente mau. Ele é entranhadamente medíocre, mas não tem culpa disso. Ele faz o que pode com o que tem ou o que é, e ele não é grande coisa, e não pode muito” (André Comte-Sponville, em O espírito do ateísmo)
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85. “Como animais produzidos pela natureza, não somos de todo desprovidos de qualidades e de méritos. Partimos de tão baixo! Quem poderia adivinhar, cem mil anos atrás, que aquelas espécies de grandes símios iriam à Lua, gerariam Michelangelo e Mozart, Shakespeare e Einstein, que inventariam os direitos humanos e até os direitos dos animais? Nós lutamos, por exemplo, para proteger as baleias e os elefantes. Temos razão. Mas imaginem que a humanidade se torne, isso talvez venha a acontecer, uma espécie em extinção: baleias e elefantes não levantariam a nadadeira ou a tromba para nos preservar. A ecologia é própria do homem (sim, apesar da poluição, ou antes, por causa dela), e os direitos dos animais, inclusive, só existem para os humanos. Isso diz muito sobre a espécie” (André Comte-Sponville, em O espírito do ateísmo)
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86. “O mesmo homo sapiens, que não seria mais que uma imitação grotesca de Deus, é o mais extraordinário, de longe, de todos os animais: ele tem um cérebro espantosamente complexo e eficiente; é capaz de amor, de revolta, de criação; inventou as ciências e as artes, a moral e o direito, a religião e a irreligião, a filosofia e o humor, a gastronomia e o erotismo… Não é pouco! O que ele fez de melhor, nenhum animal teria feito. O que ele fez de pior, também não. Isso diz bastante sobre sua singularidade (André Comte-Sponville, em O espírito do ateísmo)
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87. “O ateísmo (…) é uma forma de humildade. Somos filhos da terra (húmus, de onde vem ‘humildade’), e dá para sentir essa filiação… mais vale assumi-la e inventar o céu que corresponda a ela (André Comte-Sponville, em O espírito do ateísmo)
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88. Desejamos “primeiro, não morrer, ou não completamente, ou não definitivamente; depois, encontrar os seres queridos que perdemos; que a justiça e a paz terminem por triunfar; enfim, e talvez principalmente, ser amados” (André Comte-Sponville, em O espírito do ateísmo)
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89. “Seria sem dúvida muito bom se houvesse um Deus criador do mundo e uma Providência cheia de bondade, uma ordem moral do universo e uma vida depois da morte, entretanto é muito curioso que tudo isso é exatamente o que poderíamos desejar a nós mesmos” (Sigmund Freud, em O futuro de uma ilusão);
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90. “Quem não espera o triunfo final da justiça e da paz? Quem não deseja ser amado? Quem não desejaria a vitória definitiva da vida sobre a morte? Se dependesse de mim, pode ter certeza de que Deus existiria faz tempo!” (André Comte-Sponville, em O espírito do ateísmo)
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91. “Enquanto nos escapa, o objeto de nossos desejos nos parece superior a todo resto; quando obtemos, desejamos outra coisa, e a mesma sede de vida nos excita sempre” (Lucrécio)
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92. “A infância é a estação da maldade” (José Eduardo Agualusa, em A estação das chuvas)
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93. “As notícias sobre crianças que matam ou torturam outras crianças não me surpreendem. Admira-me, sim, que este fenómeno não seja mais vasto. Os grandes torturadores, e eu conheci alguns (…), são quase sempre homens que não tiveram infância e por isso a exercem mais tarde” (José Eduardo Agualusa, em A estação das chuvas)
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94. “O meu avô (…) ensinou-me a ser cética. Sobretudo, ensinou-me a desconfiar dos iluminados, daqueles que conhecem os destinos do mundo. Dizia-me: ‘As asas acontecem tanto aos anjos, quanto aos demónios, quanto às ganlinhas. Por precaução, o melhor é tratar a todos como se fossem galinhas’” (José Eduardo Agualusa, em A estação das chuvas)
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95. “Em criança tirei um pássaro de dentro de uma pequena gaiola. O pássaro não voou. Ficou ali andando aos círculos, aos círculos, aterrorizado com a largueza do mundo e a responsabilidade enorme de ter de sobreviver por si. Quando me libertaram eu me senti assim. Vagueava pelas ruas sem rumo certo. Também tinha dificuldade em reconhecer as coisas e as pessoas. Aquela cidade já não pertencia ao meu organismo, era uma prótese” (José Eduardo Agualusa, em A estação das chuvas)
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96. “Eu sou como o capim, não dou fruto, nem sombra faço. E nesta terra isso é uma coisa boa. Ninguém repara em nós” (José Eduardo Agualusa, em A estação das chuvas)
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97. “Mais prático que morrer é nunca ter existido” (José Eduardo Agualusa, em A estação das chuvas)
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98. “Não me leves muito a sério. O coração dos velhos é um mineral amargo” (José Eduardo Agualusa, em A estação das chuvas)
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99. “Falo de como estamos por dentro: de joelhos” (José Eduardo Agualusa, em A estação das chuvas)
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100. “Nunca vou me acostumar com coisa nenhuma. Quem se acostuma está morto, e não sabe” (Truman Capote, em Bonequinha de luxo)
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101. “As conversas que ela começava pareciam madeira verde, soltavam fumaça mas não pegavam fogo” (Truman Capote, em Bonequinha de luxo)
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102. “O gim está para o artifício assim como as lágrimas estão para a maquiagem”(Truman Capote, em Bonequinha de luxo)
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103. “O caráter delas fora moldado cedo demais, o que, como o enriquecimento súbito, provoca certo desequilíbrio” (Truman Capote, em Bonequinha de luxo)
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104. “‘Acredita no que estou dizendo?‘ Acreditava. Era inacreditável demais para não ser verdade” (Truman Capote, em Bonequinha de luxo)
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105. “Os relógios ficam lerdos no domingo” (Truman Capote, em Bonequinha de luxo)
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106. “Não ame nunca um bicho selvagem, Sr. Bell (…). Esse foi o erro de Doc. Sempre voltava de casa com alguma coisinha selvagem. Um falcão de asa machucada. Até um lince crescido com pata quebrada. Mas não dá para entregar o coração a um bicho desses: quanto mais você dá, mais forte ele fica. Até que fica forte o bastante para voltar para o mato. Ou para voar até uma árvore, depois para outra mais alta, depois para o céu. É assim que acaba, Sr. Bell. Se a gente amar um bicho selvagem, vai acabar olhando para o céu” (Truman Capote, em Bonequinha de luxo)
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107. “Qualquer um deveria poder casar com um homem ou uma mulher – escute, se você viesse me dizer que queria juntar os trapinhos com o garanhão Man O’War, eu iria respeitar seus sentimentos. É sério. O amor deveria ser livre. Sou totalmente a favor. Agora que faço uma boa ideia do que é amar (Truman Capote, em Bonequinha de luxo)
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108. “A verdade é que as coisas boas só acontecem se a gente for uma boa pessoa. Boa, não, honesta é melhor. Não honesta no que diz respeito à lei – eu violaria um túmulo e roubaria os olhos do morto se isso servisse para melhorar o dia -, mas honesta consigo mesma (Truman Capote, em Bonequinha de luxo)
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109. “Aquela doce profundidade em que duas pessoas se comunicam mais em silêncio do que com palavras: uma calma afetuosa toma o lugar das tensões, do falatório e da brigalhada sem fim que produzem os momentos mais vistosos, mais superficialmente dramáticos de uma amizade (Truman Capote, em Bonequinha de luxo)
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110. “Holly Golightly, antes de ler uma carta importante: ‘você pode abrir aquela gaveta e me passar a bolsa? Uma garota não pode ler uma coisa dessas assim, sem batom’” (Truman Capote, em Bonequinha de luxo)
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111. “O que é que você sente quando está apaixonada?, ela perguntava. Ah, Rosita dizia com os olhos desfalecentes, parece que botaram pimenta no coração, parece que tem uns peixinhos nadando na veias” (Truman Capote, em “Uma casa de flores”)
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112. “Até então, não se sentira solitário. Agora, reconhecendo a sua solidão, sentia-se vivo” (Truman Capote, em “Um violão de diamante”)
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113. “Já é ruim ter que viver sem alguma coisa que a gente quer; mas, arre, o que me tira do sério é não poder dar a alguém uma coisa que a gente quer que o outro tenha” (Truman Capote, em “Memória de um Natal”)
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114. “Eu, por mim, poderia partir deste mundo com o dia de hoje nos olhos” (Truman Capote, em “Memória de um Natal”)
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115. “Levante-se e escreva. Vamos! Diversão infeliz dos poetas falidos. A língua débil da memória esforçava-se por capturar insetos de metáforas” (Assionara Souza, em Os hábitos e os monges)
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116. “Fechou os olhos sem dormir. Mirou-se aflito por dentro da alma escura. Noite após noite: Noite” (Assionara Souza, em Os hábitos e os monges)
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117. “Ontem a chuva lavou as pedras, mas não os desejos” (Assionara Souza, em Os hábitos e os monges)
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118. “Sou a favor de armas, desde que os idiotas realmente se suicidem” (Assionara Souza, em Os hábitos e os monges)
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119. Vamos, garoto, recite o poema! Se a cólera espuma a dor que mora n’alma. A vida em constante manifestar-se. É como eu digo pra vocês, meus amigos. Diante do mar: valeu a pena? Silêncio na sala de aula. Todos dormem (Assionara Souza, em Os hábitos e os monges)
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120. “Hoje, por decisão, começo a envelhecer” (Assionara Souza, em Os hábitos e os monges)
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121. “- Ainda existe alguma coisa pela qual valha a pena morrer? / O colega Estacou um instante. / – A vida – respondeu.” (Otto Leopoldo Wick, em Jaboc)
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122. “Voltei de uma festa. Um baile de fantasia, é melhor dizer. Todo mundo de máscara. Agora todos dormem, todos podem dormir. Desatarraxaram as máscaras e no escuro não há o perigo de descobrirem que não têm rosto. Eu não: arranquei a minha no espelho e me contemplei longamente” (Otto Leopoldo Wick, em Jaboc)
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123. “Contra os moinhos de vento, a imaterialidade do discurso” (Otto Leopoldo Wick, em Jaboc)
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124. “Metafísica, poesia, ópera, meditação, bronha, aguardente – tudo por causa de um torcicolo, um mau jeito, uma luxação na alma” (Otto Leopoldo Wick, em Jaboc)
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125. “Não tem caráter, porque ainda nem sabe o que é isso. Decerto, nunca refletiu sobre a vida, e para quê?” (Robert Walser, em Jakob Von Guntem, um diário)
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126. “Como se é infantil quando se tem medo. Não há comportamento pior que aquele ditado pela desconfiança e pela ignorância” (Robert Walser, em Jakob Von Guntem, um diário)
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127. “Que eu seja o mais inteligente de todos nem é feito, talvez, que proporcione grande satisfação. De que adiantam pensamentos e ideias quando se tem, como eu, a sensação de não saber o que fazer com eles?” (Robert Walser, em Jakob Von Guntem, um diário)
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128. “Nada me agita mais profundamente que a visão e o odor da bondade e da probidade. O sentimento das coisas vis e más logo se esgota, mas compreender o valoroso e o nobre é tão difícil quanto atraente” (Robert Walser, em Jakob Von Guntem, um diário)
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129. “A interdição de certas coisas é por vezes tão encantadora que não se tem como não fazê-las. É por isso que todo tipo de obrigação me é cara: porque nos possibilita a alegria da transgressão. Se não houvesse nenhum mandamento nesse mundo, nenhuma obrigação, eu morreria, pereceria de inanição, me estropiaria de tédio. Que me incitem, pois, que me obriguem e tutelem. Acho absolutamente adorável. No fim, quem decide sou eu, e ninguém mais” (Robert Walser, em Jakob Von Guntem, um diário)
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130. Consegue imaginar a fala desse sujeito? “Do meu colega Fuchs, tenho apenas uma coisa a dizer: é um sujeito oblíquo, tortuoso. Fala como quem executa uma cambalhota malsucedida” (Robert Walser, em Jakob Von Guntem, um diário)
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131. “As histórias familiares se parecem, dissera ela, os personagens se reproduzem e superpõem – sempre há um tio que é um estroina, uma apaixonada que fica solteira, há sempre um louco, um ex-alcoólatra, um primo que gosta de se vestir de mulher nas festas, um fracassado, um vencedor, um suicida” (Ricardo Piglia, em Alvo Noturno)
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132. “O senhor vê campos cultivados, desertos, cidades, fábricas, mas o coração secreto das pessoas é uma coisa que não se entende nunca. E isso é incrível porque somos policiais. Ninguém está em melhor situação para ver os extremos da miséria e da loucura” (Ricardo Piglia, em Alvo Noturno)
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133. “Por outro lado, possivelmente fossem uma seita de comedores de cogumelos. Por isso Cristo se retira para o deserto e recebe Satanás. Essas seitas palestinas – por exemplo os essênios – ingeriam fungos alucinógenos que são a base de todas as religiões antigas, andavam pelo deserto delirantes, falando com Deus e ouvindo os anjos, e a hóstia consagrada não era mais que uma imagem dessa comunhão mística que prendia entre si os iniciados do pequeno grupo, acrescentara o seminarista num aparte, contava Luca. Comei, esta é a minha carne” (Ricardo Piglia, em Alvo Noturno)
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134. “A fiadora e a tecedura mecânica do destino! Esse tecido provoca calafrios até a medula. É urdido em algum lugar e nós viemos tecidos, floreados na trama. Ah, se eu pudesse tornar a penetrar, nem que fosse por um instante, na oficina onde funcionam todos os teares. A visão não dura nem um segundo, porque depois já caio no sonho bruto da realidade” (Ricardo Piglia, em Alvo Noturno)
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135. “Os velhos se interessam por netos, isso é sabido, fato associado aos ciclos da natureza ou a alguma coisa, enfim, uma espécie de emoção consegue brotar em suas velhas cabeças, o filho é a morte do pai isso é certo mas para o avô o neto é uma espécie de renascimento ou remanche” (Michel Houellebecq, em O mapa e o território)
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136. “É decerto por compaixão que presumimos uma gula particularmente intensa nas pessoas idosas, porque desejamos nos persuadir de que lhes resta ao menos isso, ao passo que, na maioria dos casos, os gozos gustativos extinguem-se irremediavelmente, como todo o resto. Subsistem os distúrbios digestivos e o câncer de próstata” (Michel Houellebecq, em O mapa e o território)
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137. “- Que bom que você é independente – respondeu seu pai. – Ao longo da vida conheci muita gente que queria ser artista e era sustentada pelo pai; nenhum deles conseguiu chegar lá. Curioso, podemos achar que a necessidade de se exprimir, de deixar um rastro no mundo, é uma força poderosa; e, no entanto, isso em geral não basta. O que funciona melhor, o que ainda obriga as pessoas a se superarem é a pura e simples necessidade de dinheiro” (Michel Houellebecq, em O mapa e o território)
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138. “Ainda mais surpreendente, era íntimo dos principais dogmas da fé católica, cujo estigma sobre a cultura ocidental fora tão profundo – ao passo que, nesse campo, seus contemporâneos geralmente sabiam um pouco menos sobre a vida de Jesus que sobre a do Homem-Aranha” (Michel Houellebecq, em O mapa e o território)
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139. “Naquela casa, sentia-se tentado a acreditar em coisas como o amor, o amor recíproco de um casal, que irradia pelas paredes com certo calor, um calor meigo que se transmite aos futuros ocupantes para lhes dar serenidade” (Michel Houellebecq, em O mapa e o território)
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140. “Olga foi recebida como uma cliente da casa por Georges, magro, calvo e vagamente sinistro, com um ar de ex-gay devasso” (Michel Houellebecq, em O mapa e o território)
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141. “Assimilou rapidamente o comportamento apropriado. Não precisava ser obrigatoriamente brilhante, o melhor quase sempre era não falar nada, mas era indispensável escutar seu interlocutor, escutá-lo com gravidade e empatia, às vezes reanimando a conversa com um ‘Sério?’ destinado a denotar interesse e surpresa, ou um ‘Sem dúvida…‘enfatizado por uma aprovação compreensiva” (Michel Houellebecq, em O mapa e o território)
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142. “Encontraram-se no escritório de Olga e foi constrangedor ver, lado a lado, aquela criatura untuosa, de formas indefinidamente desejáveis, e aquele mísero pedacinho de mulher, com a vagina inexplorada” (Michel Houellebecq, em O mapa e o território)
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143. “Eram um jovem casal urbano rico e sem crianças, esteticamente decorativo, ainda na primeira fase do amor – e, por conseguinte, prontos para se deslumbrar com tudo, na esperança de acumular um acervo de belas recordações que lhes seriam úteis quando se aproximassem dos anos difíceis (…) – representavam, para qualquer profissional da hotelaria-gastronomia, o arquétipo dos clientes ideias” (Michel Houellebecq, em O mapa e o território)
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144. “Viveram felizes por várias semanas (não era, não podia mais ser a felicidade exacerbada e fervilhante dos jovens; durante os fins de semana não cogitavam mais fazer a cabeça ou encher a cara; já se preparavam – mas ainda estavam em idade de se divertir com isso – para aquela felicidade epicurista, sossegada, sofisticada sem esnobismo que a sociedade ocidental oferece aos representantes de suas classes médias altas em meados de vida” (Michel Houellebecq, em O mapa e o território)
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145. “Humildes e desvalidos, desprezados por todos, submetidos a todas as mazelas da vida urbana sem ter acesso a nenhum de seus prazeres, os jovens padres urbanos constituíam, para quem não comungava sua crença, um tema desorientador e incansável” (Michel Houellebecq, em O mapa e o território)
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146. “Jed não era jovem – a bem da verdade, nunca fora” (Michel Houellebecq, em O mapa e o território)
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147. “Ser artista, na sua opinião, era antes de tudo ser alguém submisso. Submisso a mensagens misteriosas, imprevisíveis, que poderíamos, na falta de termo melhor e na ausência de toda a crença religiosa, qualificar como intuições” (Michel Houellebecq, em O mapa e o território)
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148. “Com o braço lançado para a frente e para cima – apontado para a multidão espremida atrás dos cordões, como era previsível -, Kennedy sorria com aquele entusiasmo e otimismo cretinos tão difíceis de serem imitados pelos não americanos” (Michel Houellebecq, em O mapa e o território)
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149. “Ali estava um homem que havia dirigido com dinamismo, e às vezes com pulso firme, uma empresa com uns cinquenta funcionários, que tivera de despedir, contratar; que negociara contratos envolvendo dezenas, às vezes centenas de milhões de euros. Mas as cercanias da morte trazem humildade, e o que ele parecia querer, aquela noite, era que tudo transcorrese da melhor maneira possível, e principalmente, não incomodar, era essa, aparentemente, sua única ambição atual na Terra” (Michel Houellebecq, em O mapa e o território)
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150. “Em meio à decadência física generalizada a que se resume a velhice, a voz e o olhar constituem o testemunho dolorosamente irrecusável da persistência do caráter, das aspirações, dos desejos, de tudo o que constitui uma personalidade humana” (Michel Houellebecq, em O mapa e o território)
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151. “É sempre possível, dissera-lhe Houellebecq ao evocar sua carreira de romancista, fazer anotações, tentar alinhar frases; mas, para nos lançarmos na escrita de um romance, temos que esperar que tudo se torne compacto, irrefutável, esperar a eclosão de um real foco de necessidade” (Michel Houellebecq, em O mapa e o território)
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152. “Perguntou-se fugazmente o que o levara a se lançar numa representação artística do mundo, ou mesmo a pensar que uma representação artística do mundo fosse possível, o mundo era tudo, exceto um tema de emoção artística, o mundo apresentava-se irrefutavelmente como um dispositivo racional, destituído tanto de magia quanto de interesse especial” (Michel Houellebecq, em O mapa e o território)
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153. “Percebeu que estava prestes a deixar aquele mundo do qual nunca fizera parte de verdade, seus contatos humanos, já pouco numerosos, iriam secar e se esgotar um por um, ele se acharia na vida como de achava agora, na cabine sofisticada e bem-acabada de seu Audi Allroad A6, sereno e sem alegria, definitivamente neutro” (Michel Houellebecq, em O mapa e o território)
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154. “O cão é uma espécie de criança definitiva, mais dócil e mais doce, uma criança que se houvesse imobilizado na idade da razão, mas, além disso, uma criança à qual sobreviveremos: aceitar amar um cão é aceitar amar uma criatura que irá, inelutavelmente, ser-lhe arrancada” (Michel Houellebecq, em O mapa e o território)
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155. “Sem dúvida influenciado pelas ideias em voga na sua geração, até aquele momento julgara a sexualidade uma força positiva, uma fonte de união que aumentava a concórdia entre os humanos pelos caminhos inocentes do prazer compartilhado. Agora, ao contrário, via nela cada vez mais frequentemente a luta, o combate brutal pela dominação, a eliminação do rival e a multiplicação fortuita dos coitos sem nenhuma razão de ser além de assegurar uma propagação máxima aos genes. Via nela a fonte de todo conflito, todo massacre, todo sofrimento. A sexualidade se lhe afigurava cada vez mais como a manifestação mais direta e evidente do mal. E não era sua carreira na polícia que o faria mudar de opinião: os crimes que não tinham como motivação o dinheiro tinham como motivação o sexo, era um ou outro, a humanidade parecia incapaz de imaginar qualquer coisa afora isso, ao menos em matéria criminal” (Michel Houellebecq, em O mapa e o território)
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156. Sobre a economia: “- Ouviu os prognósticos? – Não, na realidade não escutara absolutamente nada, contentara-se em admirar seus seios, mas absteve-se de interrompê-la. – Daqui a uma semana, vão constatar que todos os prognósticos eram falsos. Chamarão outro especialista, talvez o mesmo, e ele fará novos prognósticos, com a mesma segurança… – Ela balançava a cabeça, desolada, quase indignada. – Com que direito uma disciplina incapaz de fazer um prognóstico verificável se arvora a ser uma ciência?” (Michel Houellebecq, em O mapa e o território)
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157. “Ah, sim, deram-lhe morfina, não havia restrições, preferiam os internos sossegados, mas aquilo era vida, estar o tempo todo sob efeito de morfina? // Na verdade, Jed achava que sim, que era inclusive uma vida particularmente invejável, sem preocupações, sem responsabilidades, sem desejos nem temores, próxima da vida das plantas, em que é possível desfrutar da carícia moderada do sol e da brisa” (Michel Houellebecq, em O mapa e o território)
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158. “Uma dezena de tarântulas precipitou-se, agitando-se sobre suas patas felpudas, para o compartimento vizinho, tratando imediatamente de destroçar os insetos que o ocupavam – robustas e cintilantes centopeias. Pronto, eis com o que o doutor Petisque ocupava suas noites, em vez de se distrair, como a maioria dos colegas, em banais orgias com prostitutas eslavas. Tomava-se por Deus, pura e simplesmente, e agia com suas populações de insetos como Deus com as populações humanas” (Michel Houellebecq, em O mapa e o território)
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159. “De maneira mais genérica, vivia-se um período ideologicamente estranho, em que todos na Europa ocidental pareciam persuadidos de que o capitalismo estava condenado, inclusive a curto prazo, e que vivia seus derradeiros anos, sem que os partidos radicais de esquerda, no entanto, conseguissem seduzir alguém além de sua clientela habitual de masoquistas ressentidos. Um véu de cinzas parecia embotar os espíritos” (Michel Houellebecq, em O mapa e o território)
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160. “Somos muito normais, não há outro plano previsto além de ser normal, é uma inclinação que herdamos no sangue. Durante gerações nossas famílias trabalharam para refinar a vida até tirar dela qualquer evidência – qualquer aspereza que pudesse nos destacar ao olhar distante. Com o tempo acabaram conseguindo certa competência no ramo, mestres da invisibilidade” (Alessandro Baricco, em A paixão de A.)
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161. “Assim, para nós o mundo tem fronteira físicas muito imediatas, e fronteiras mentais fixas como uma liturgia. E aquele é nosso infinito” (Alessandro Baricco, em A paixão de A.)
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162. “Queimam a memória e, nas cinzas, leem o próprio futuro” (Alessandro Baricco, em A paixão de A.)
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163. “É preciso dizer que ela é especialmente bonita, e sem querer. Tem um quê de masculino. Uma dureza. Isso facilita as coisas para nós – somos católicos: a beleza é uma virtude moral e não tem nada a ver com o corpo, portanto a curva de um traseiro não significa nada, nem o ângulo perfeito de um tornozelo delgado tem de significar alguma coisa: o corpo feminino é o objeto de uma sistemática remissão” (Alessandro Baricco, em A paixão de A.)
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164. “Somos cheios de palavras cujos verdadeiros significados não nos ensinaram, e uma delas é a palavra dor. Outra é a palavra morte. Não sabemos o que designam, mas as usamos, e isso é um mistério (…). Certa vez Bobby me disse que quando era mais novo, e tinha catorze anos, foi por acaso a uma reunião na paróquia dedicada ao tema da masturbação, e o curioso era que na realidade ele, naquela época, não conhecia o significado da palavra masturbação – a verdade é que não sabia o que era. Mas tinha ido, e, aliás, dera sua opinião e discutira animadamente, isso ele lembrava. Disse que, pensando bem, não estava certo de que os outros soubessem do que estavam falando. Talvez o único ali que realmente batia punheta fosse o padre, disse.” (Alessandro Baricco, em A paixão de A.)
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165. “A beleza física é algo para o qual não ligamos. Não é necessária à edificação do Reino. Assim, Luca a carrega consigo, sem usá-la – um encontro adiado. Para a maioria ele parece um tipo distante, e as garotas adoram aquela distância, que chamam de tristeza. Mas, como todo mundo, ele gostaria simplesmente de ser feliz” (Alessandro Baricco, em A paixão de A.)
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166. “É um habitat absurdo, feito de dor reprimida e censuras diárias. Mas nós não podemos perceber o quanto é absurdo, porque, como répteis no pântano, conhecemos apenas aquele mundo, e o pântano para nós é a normalidade. Por isso somos aptos a metabolizar doses inacreditáveis de infelicidade, tomando-as pelo curso devido das coisas: nem sequer desconfiamos que escondem feridas a ser curadas e fraturas a recompor” (Alessandro Baricco, em A paixão de A.)
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167. “Nós homens tocamos toda a pele que podemos e, de vez em quando, enfiamos as mãos sob as saias delas, mas nem sempre. Elas, no entanto, tocam logo nosso sexo, pois somos nós que abrimos as calças e, às vezes, as tiramos. Isso acontece em casas em que os pais, irmãos, irmãs estão do outro lado, atrás da porta, e qualquer um pode entrar de uma hora para outra. Portanto fazemos tudo numa precariedade permeada de perigo. Frequentemente não há nada mais que uma porta entreaberta entre o pecado e o castigo, e isso faz com que o prazer de se tocar e o medo de ser descobertos, assim como o desejo e o remorso, aconteçam simultaneamente, ligados numa única emoção que nós chamamos, com precisão esplêndida, sexo: conhecemos cada matiz e apreciamos sua reluzente origem no complexo de culpa, do qual é uma variante entre tantas outras. Se alguém pensar que é um modo infantil de ver as coisas, não entendeu nada. O sexo é pecado: pensá-lo como algo inocente é uma simplificação a que só os infelizes se entregam” (Alessandro Baricco, em A paixão de A.)
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168. “É que seguimos em frente à base de flashes, o resto é escuridão” (Alessandro Baricco, em A paixão de A.)
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169. “Ele queria dizer que, na ausência de sentido, ainda assim o mundo acontece, e naquela acrobacia de existir sem coordenadas há uma beleza, até uma nobreza, às vezes.” (Alessandro Baricco, em A paixão de A.)
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170. “Diz que precisamos nos apavorar, e que somos tudo, essa é nossa beleza, não nossa doença. É o avesso do horror” (Alessandro Baricco, em A paixão de A.)
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171. “Entre a dolce vita no estrangeiro e o retorno arriscado para casa, ele escolheu o retorno. À exploração apaixonada do desconhecido (a aventura), ele preferiu a apoteose do conhecido (o retorno). Ao infinito (pois a aventura pretende ser infinita), preferiu o finito (pois o retorno é a reconciliação com a finitude da vida)” (Milan Kundera, em A ignorância)
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172. “Todas as previsões se enganam, é uma das poucas certezas que foram dadas ao homem. Mas se erram em relação ao futuro, dizem a verdade sobre quem as formula, são a melhor chave para compreender como viveram no seu tempo” (Milan Kundera, em A ignorância)
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173. “O mesmo cineasta do subconsciente que, durante o dia, lhe enviava porções de sua terra natal como imagens de felicidade, organizava, à noite, retornos pavorosos a esse mesmo país. O dia era iluminado pela beleza do país que havia sido abandonado, e a noite pelo horror de retornar a ele. O dia mostrava-lhe o paraíso que ele havia perdido, a noite, o inferno do qual havia fugido” (Milan Kundera, em A ignorância)
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174. “Era incapaz de viver sozinho, sem os cuidados das mulheres. Mas cada vez menos suportava suas exigências, suas brigas, seus choros e até mesmo seus corpos, presentes demais, expansivos demais. Para conservá-las e ao mesmo tempo fugir delas, atirava contra elas granadas de bondade. Resguardado atrás da nuvem da explosão, ele batia em retirada” (Milan Kundera, em A ignorância)
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175. “Ela vê as bocas que se abrem todas ao mesmo tempo, bocas que se mexem, emitem palavras e explodem sem parar em muitas risadas (mistério: como é que mulheres que não se escutam podem rir daquilo que falam?) (Milan Kundera, em A ignorância)
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176. “A gigantesca vassoura invisível que transforma, desfigura, apaga as paisagens está trabalhando há milênios, mas seus movimentos, outrora lentos, apenas perceptíveis, aceleraram-se de tal modo que eu me pergunto: a Odisseia, hoje, seria concebível? A epopeia do retorno pertence ainda à nossa época? Pela manhã, ao acordar nas encostas de Ítaca, Ulisses poderia ouvir extasiado a música do Grande Retorno se a velha oliveira tivesse sido derrubada e se não pudesse reconhecer nada à sua volta?” (Milan Kundera, em A ignorância)
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177. “Ela tem assim a impressão de sair de sua adolescência, de tornar-se madura, adulta, o que para ela significa: aquela que tomou conhecimento do tempo, que deixou um pedaço de sua vida para trás e que pode virar a cabeça para olhá-lo” (Milan Kundera, em A ignorância)
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178. “Morrer; decidir morrer; é muito mais fácil para um adolescente do que para um adulto. O quê? A morte não priva o adolescente de uma parte muito maior do futuro? Certo, mas para um jovem o futuro é uma coisa distante, abstrata, irreal, na qual ele realmente não acredita” (Milan Kundera, em A ignorância)
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179. “Pois a mulher morta é uma mulher indefesa; não possui mais poder, não possui mais influência: não respeitam mais nem seus desejos nem seus gostos; a mulher morta não pode desejar nada, não pode aspirar a nenhuma estima, refutar nenhuma calúnia. Nunca sentira por ela uma compaixão tão dolorosa, tão torturante, como depois de sua morte” (Milan Kundera, em A ignorância)
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180. Uma defesa da brevidade da vida: “Os relacionamentos eróticos podem preencher toda a vida adulta. Mas, se essa vida for muito mais longa, o tédio não sufocará a capacidade de excitação muito antes de as forças físicas declinarem? Pois existe uma enorme diferença entre o primeiro, o décimo, o centésimo, o milésimo ou o milionésimo coito. Onde se situa a fronteira depois da qual a repetição se tornará estereotipada, ou então cômica, até mesmo impossível?” (Milan Kundera, em A ignorância)
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181. “Se alguém pudesse reter na memória tudo o que viveu, se pudesse a qualquer momento evocar qualquer fragmento do passado que quisesse, não teria nada a ver com os humanos: nem seus amores, nem suas amizades, nem suas raivas, nem sua faculdade de perdoar ou de se vingar se pareceriam com os nossos. // Poder-se-iam criticar indefinidamente aqueles que deformam o passado, o rescrevem, o falsificam, que aumentam a importância de um acontecimento, se calam a respeito de outro; essas críticas são justas (não podem deixar de ser) mas (…) nada compreendemos da vida humana se persistirmos em escamotear a primeira e todas as evidências: uma realidade tal qual quando ela existiu não existe mais; sua restituição é impossível” (Milan Kundera, em A ignorância)
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182. “Sobre o futuro todo mundo se engana. O homem só pode ter certeza do momento presente. Mas será realmente verdade? Ele pode conhecer verdadeiramente o presente? Será capaz de julgá-lo? Claro que não. Pois como é que aquele que não conhece o futuro pode compreender o sentido do presente? Se não conhecermos o futuro a que o presente nos conduz, como poderemos dizer que esse presente é bom ou mau, que merece nossa adesão, nossa desconfiança ou nossa raiva?” (Milan Kundera, em A ignorância)
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183. “Por mais inteligentes que sejam, as discussões que se passam nas altas esferas do espírito são sempre míopes diante daquilo que, sem razão ou lógica, se passa embaixo: dois grandes exércitos guerreiam até a morte por causas sagradas; mas é a minúscula bactéria da peste que aniquilará a ambos” (Milan Kundera, em A ignorância)
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184. Sobre a velocidade da leitura: “Eu dava conta de um bloco de texto ou de um parágrafo inteiro num só gole visual. Era questão de deixar os olhos e os pensamentos escorrerem, como cera, para tirar uma impressão fresquinha da página. Para irritação dos que ficavam em torno de mim, eu virava a página de poucos em poucos segundos com um gesto impaciente do pulso. As minhas necessidades eram simples. Eu não prestava muita atenção em temas ou frases especialmente bem resolvidas e pulava belas descrições de clima, paisagens e interiores” (Ian McEwan, em Serena)
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185. “Eu vi dobras de pele em locais improváveis, até debaixo dos braços dele. Que coisa mais estranha que, na minha surpresa, rapidamente reprimida, não tenha me ocorrido que eu estava olhando para o meu próprio futuro. Eu estava com vinte e um. O que eu considerava a regra – rija, lisa, macia – era o caso especial, e passageiro, da juventude. Para mim, os velhos eram uma espécie à parte, como os pardais ou as raposas. E agora, o que eu não daria para voltar a ter cinquenta e quatro!” (Ian McEwan, em Serena)
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186. “Enfiadas de camisas ‘psicodélicas’ e roupas militares enfeitadas à la Sgt. Pepper pendiam de longas araras na calçada. À disposição de hordas de pessoas que pensavam igual e estavam desesperadas por exprimir a sua individualidade” (Ian McEwan, em Serena)
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187. “Ela tinha uma mania ou um ponto fraco, rir estrondosamente das suas próprias piadas – não, eu achava, por pensar que era engraçada, mas porque achava que a vida precisava ser celebrada e queria que os outros se juntassem a ela. Gente que fala alto, especialmente as mulheres, sempre atrai inimigos” (Ian McEwan, em Serena)
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188. “Às vezes não conversar é o melhor jeito de enfrentar uma dificuldade. Essa modinha de ‘verdade’ pessoal, e de confrontar as coisas, estava causando muitos prejuízos, na minha opinião, e acabando com muitas amizades e casamentos” (Ian McEwan, em Serena)
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189. “O amor não cresce num ritmo estável, mas avança em ondas, choques, saltos selvagens” (Ian McEwan, em Serena)
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190. “Era simpaticamente agitado, como que perpetuamente suspenso no último segundo de uma piada” (Ian McEwan, em Serena)
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191. “Seria possível escapar daqueles compromissos invocando os privilégios do artista livre, mas ele odiava esse tipo de arrogância. Tinha diversos amigos que usavam o expediente de se passarem por gênios quando interessava, deixando de comparecer a um ou outro evento por crer que as dificuldades assim causadas apenas aumentariam o respeito pela natureza imperativa de sua vocação artística. Essas pessoas – e os escritores eram os piores – conseguiam convencer amigos e familiares de que não só suas horas de trabalho eram importantes, mas que também qualquer soneca ou caminhada, quaisquer episódios de silêncio, depressão ou embriaguez tinham uma justificativa superior” (Ian McEwan, em Amsterdam)
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192. “Era fácil para Clive imaginar a civilização como o somatório de todas as artes, juntamente com o design de qualidade, boas comidas, bons vinhos e coisas do gênero. Mas agora ela parecia ser o que realmente era – quilômetros quadrados de casas modernas e ordinárias cujo principal propósito consistia em sustentar as antenas de TV; fábricas produzindo coisas sem valor para serem anunciadas nas televisões; e, em lúgubres pátios, caminhões fazendo filas para distribuí-las; fora disso, estradas e a tirania do tráfego. Parecia a manhã seguinte de uma festa de arromba. Ninguém gostaria que fosse assim, mas ninguém fora consultado. Ninguém o planejara, mas a maioria das pessoas tinha de viver ali” (Ian McEwan, em Amsterdam)
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193. “E haja estradas, novas estradas se insinuando sem cessar, sem pejo, como se a única coisa importante fosse ir de um lugar para outro. No que concernia ao bem-estar de qualquer outra forma de vida na Terra, o projeto humano não era apenas um fracasso, mas um erro desde o começo” (Ian McEwan, em Amsterdam)
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194. “Sabemos tão pouco sobre os outros. Permanecemos em geral submersos, como icebergs, com nossas identidades sociais visíveis projetando apenas o que temos de branco e frio. Aqui estava uma rara visão do que fica sob as ondas, da privacidade e dos distúrbios de um homem, de sua dignidade demolida pela necessidade esmagadora da fantasia pura, do pensamento puro, pelo irredutível elemento humano – a mente” (Ian McEwan, em Amsterdam)
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195. “Não recebe cartas. Não abre envelopes. Quem a conhece sabe. É uma espécie de fobia. Há vinte anos, evita receber notícias” (Bernardo Carvalho, em O filho da mãe)
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196. “Sempre haverá alguém pronto para reconhecer e atacar a vulnerabilidade onde quer que ela se manifeste (…), só deixará de ser vulnerável quando já não tiver nada a perder” (Bernardo Carvalho, em O filho da mãe)
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197. “Nikolai nunca se entendeu com o enteado. No fundo, não pode ver a juventude. Não se conforma em ter perdido a sua. A infância o enternece, mas os adolescentes, descobrindo o prazer, fazem-no perder a cabeça (…). Desde o início, rivalizara com o amor que a mulher nutria pelo filho. Tentou ignorá-lo, porque também a amava. MsA, conforme o rapaz ia se tornando mais bonito, a rivalidade também crescia. Só a promessa de que toda aquela felicidade, inocência e independência um dia teriam fim podia tranquilizá-lo” (Bernardo Carvalho, em O filho da mãe)
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198. “Reproduzir faz parte da natureza humana, tanto quanto a guerra. Reproduzir e matar” (Bernardo Carvalho, em O filho da mãe)
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199. “As histórias de amor podem não ter futuro, mas têm sempre passado. É por isso que as pessoas se agarram a tudo o que as remete de volta ao que perderam. Os livros que elas leem sempre dizem respeito ao passado. Romances históricos, memórias, biografias, tudo tem que ser escrito em retrospectiva, senão não faz sentido. Ninguém quer ler o que está por vir, à beira do abismo. As pessoas precisam se agarrar ao que já conhecem. Os modernismo não podiam mesmo durar. Nem as revoluções. Ninguém vai construir uma casa à beira do abismo” (Bernardo Carvalho, em O filho da mãe)
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200. As mães têm mais a ver com as guerras do que imaginam. É o contrário do que todo mundo pensa. Não pode haver guerra sem mães. Mais do que ninguém, as mães têm horror a perder. Você é capaz de tudo para evitar a morte de um filho. É capaz de defendê-lo contra a própria justiça. Os filhos estão acima de qualquer suspeita. Você é capaz de matar por um filho. E acaba recebendo o troco na mesma moeda quando a guerra o leva. Está pronta para defender a prole e o clã contra tudo. Sem querer ver que é daí que nascem as guerras. Todo mundo tem mãe. Até o pior canalha, o pior carrasco. Não deixa de ser uma espécie de fanatismo” (Bernardo Carvalho, em O filho da mãe)
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201. “Ah, humilhação é quase tudo, quer coisa mais humilhante do que amar e não ser correspondido? Esse papo de que amar é o mais importante é história pra boi dormir, objetivo de quem quer ser Buda, Cristo, madre Teresa de Calcutá, amar, grande porcaria (…), amar é uma merda, bom mesmo é ser amado, isso é na realidade o que importa, se você ama ou não é um detalhe, aliás, o melhor é não amar” (Carola Saavedra, em Toda terça)
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202. “Em frente ao espelho eu era um cachorro, um doguinho dos mais desprezíveis, cara de carente profissional, abanando o rabo para primeira mocinha um pouco esperta que tinha aparecido. Então, perguntei a mim se cachorros morriam de amor. Não, cachorros não morriam de amor. Cachorros morriam atropelados, morriam de falta de ração, não de amor. Se ao menos eu tivesse uma mandíbula nervosa” (Luiz Felipe Leprevost, em E se contorce igual a um dragãozinho ferido)
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203. “O dia seguinte, sempre essa insistência de ressurreição” (Luiz Felipe Leprevost, em E se contorce igual a um dragãozinho ferido)
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204. “Eis a questão: Se mantemos o instinto numa espécie de cativeiro amigável, um dia, cedo ou tarde, ele nos trai” (Luiz Felipe Leprevost, em E se contorce igual a um dragãozinho ferido)
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205. “Você está sozinha e eu também estou. E é inexplicável, mas também a nossa ausência tem matéria” (Luiz Felipe Leprevost, em E se contorce igual a um dragãozinho ferido)
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206. “Não. A história do Dilúvio é tola, simplesmente. Nos é contado que ele foi causado por uma chuvarada que durou quarenta dias e quarenta noites. Toda essa água devia ter existido na Terra antes das chuvas começarem, pois não pode cair mais do que foi levado para cima. O bom senso me diz que isso é um ingênuo disparate” (Flann O’Brien, em O arquivo Dalkey)
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207. “As atitudes do homem estão todas sujeitas a predestinação e ele não pode, portanto, ter livre-arbítrio. Deus criou Judas. Cuidou para que ele fosse criado, educado e pudesse prosperar nos negócios. Ele também estabeleceu que Judas devesse trair Seu Filho Divino. Então, como é que Judas pode ter culpa? (Flann O’Brien, em O arquivo Dalkey)
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208. “O sargento era amigável, por assim dizer, com seus amigos. Bebia uísque a rodo quando tinha oportunidade mas isso não parecia afetá-lo em absoluto. Hackett afirmava que isso acontecia porque os modos do sargento quando sóbrio eram idênticos aos modos das outras pessoas quando bêbadas” (Flann O’Brien, em O arquivo Dalkey)
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209. “Ela perguntou-lhe por que não escrevia seus pensamentos. Para quê, respondeu-lhe Duffy, com desprezo cauteloso. Para competir com fazedores de frases, incapazes de pensar com coerência durante sessenta segundos? Para submeter-se às críticas de uma classe média estúpida, que entrega a sua moral aos cuidados da polícia e sua arte aos empresários?” (James Joyce, no conto “Um caso doloroso”, em Dublinenses)
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210. “Tu pode deixar pra trás um filho, um irmão, um pai, com certeza uma mulher, há circunstâncias em que tudo isso é justificável, mas não tem o direito de deixar pra trás um cachorro depois de cuidar dele por um certo tempo (…). Os cachorros abdicam pra sempre de parte do instinto pra viver com as pessoas e nunca mais podem recuperá-lo. Um cachorro fiel é um animal aleijado” (Daniel Galera, em Barba ensopada de sangue)
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211. “Dizia que eu parecia um porco se virando no barro. Já viu um porco se virando no barro? É a própria imagem da felicidade” (Daniel Galera, em Barba ensopada de sangue)
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212. “A praia está vazia e suas areias acobreadas estão mornas e cicatrizadas do açoite da última leva de turistas” (Daniel Galera, em Barba ensopada de sangue)
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213. “O corpo é sua própria cápsula do tempo e sua viagem é sempre um pouco pública, por mais que tentemos esconder ou maquiar” (Daniel Galera, em Barba ensopada de sangue)
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214. “Pede um café. O jogo começa e nas duas horas seguintes ele bebe alguns chopes e come uma porção de batatas fritas. O Grêmio perde de três a zero para o Atlético Paranaense” (Daniel Galera, em Barba ensopada de sangue)
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215. “A maioria das pessoas, contudo, enxerga apenas a realidade superficial da escrita e acha que os escritores vivem silenciosamente concentrados em um trabalho intelectual em seu gabinete ou escritório. Basta ter força para erguer uma xícara de café, imaginam, que você pode escrever um romance. Mas assim que você arregaça as mangas para começar, percebe que não é um trabalho tão tranquilo como parece. O processo todo – sentar em sua mesa, concentrar sua mente como se fosse um raio laser, imaginar alguma coisa em um horizonte vazio, criando uma história, escolhendo as palavras certas, uma a uma, mantendo todo o fluxo da história nos trilhos – exige muito mais energia, por um longo período, do que imagina a maioria das pessoas. Pode ser que você não mova seu corpo de um lado para outro, mas há um exaustivo e dinâmico trabalho operando dentro de você. Todo mundo usa a mente quando pensa. Mas um escritor veste um traje chamado narrativa e pensa com todo o seu ser; e para o romancista esse processo exige pôr em ação toda a sua reserva física, geralmente ao ponto da estafa” (Haruki Murakami, em Do que eu falo quando eu falo de corrida)
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216. “Pensando bem, seria estranho exigir clareza das pessoas numa época como a nossa” (Fiódor Dostoiévski, em Os irmãos Karamázov)
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217. “Porque não só o excêntrico ‘nem sempre’ é uma particularidade e um caso isolado, como, ao contrário, vez por outra acontece de ser justo ele, talvez, que traz em si a medula do todo, enquanto os demais seres viventes de sua época – todos, movidos por algum vento estranho, dele estão temporariamente afastados sabe-se lá por que razão” (Fiódor Dostoiévski, em Os irmãos Karamázov)
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218. O jovem já mostrou toda a sua superioridade prática e intelectual sobre aquela numerosa parcela da nossa juventude estudantil de ambos os sexos, eternamente necessitada e infeliz” (Fiódor Dostoiévski, em Os irmãos Karamázov)
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219. “Ele chegara a essa casa ainda naquela infância tão tenra em que não há como esperar da criança astúcia de calculista, esperteza ou arte de bajular e agradar, habilidade para se fazer gostar” (Fiódor Dostoiévski, em Os irmãos Karamázov)
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220. “Meninos puros de coração e alma, ainda quase crianças, muito amiúde gostam de falar entre si, nas turmas, e inclusive em voz alta, de coisas, quadros e imagens sobre as quais nem sempre se fala sequer com soldados; além disso, neste tipo de assunto os próprios soldados ignoram e não compreendem muito do que já conhecem os filhos ainda crianças da nossa intelectualidade e da alta sociedade. Entre eles, é de crer, ainda não existe perversão moral; cinismo verdadeiro, pervertido, interior, também não, mas existe perversão exterior, e é esta que não raro eles consideram algo até delicado, fino, galhardo e digno de imitação” (Fiódor Dostoiévski, em Os irmãos Karamázov)
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221. “Não são os milagres que inclinam o realista para a fé. O verdadeiro realista, caso não creia, sempre encontrará em si força e capacidade para não acreditar no milagre, e se o milagre se apresenta diante dele como um fato irrefutável, é mais fácil ele descrer de seus sentidos que admitir o fato. E se o admite, admite-o como fato natural, que apenas lhe fora até então desconhecido. No realista a fé não nasce do milagre, mas é o milagre que nasce da fé” (Fiódor Dostoiévski, em Os irmãos Karamázov)
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222. “Todas essas deportações para trabalhos forçados, antes acompanhados de espancamentos, nunca corrigem e, principalmente, quase não atemorizam nenhum criminoso, e o número de crimes não só não diminui como ainda aumenta com o passar do tempo. O senhor há de concordar comigo nesse ponto. E assim resulta que a sociedade não ganha nenhuma proteção, pois, embora o membro pernicioso seja amputado mecanicamente e deportado para longe, fora do alcance da vista, em seu lugar aparece imediatamente outro criminoso ou talvez dois” (Fiódor Dostoiévski, em Os irmãos Karamázov)
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223. “A sociedade o alija pela força que sobre ele triunfa de forma plenamente mecânica e acompanha esse alijamento com o ódio (…) – com o ódio e a mais completa indiferença por seu futuro como irmão que ela relega ao esquecimento (…). Se, porém, retorna à sociedade, não raro o faz com tamanho ódio que a própria sociedade como que já o alija. Como isso vai terminar, os senhores mesmos podem julgar” (Fiódor Dostoiévski, em Os irmãos Karamázov)
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224. “O que à mente parece desonra é tudo beleza para o coração (…). É horrível que a beleza seja uma coisa não só terrível, mas também misteriosa. Aí lutam o diabo e Deus, e o campo de batalha é o coração dos homens. Aliás, é a dor que ensina a gemer” (Fiódor Dostoiévski, em Os irmãos Karamázov)
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225. “(…) nós aqui só não cremos por leviandade, porque nos falta tempo: em primeiro lugar, os afazeres nos absorvem, em segundo, Deus nos deu pouco tempo, apenas vinte e quatro horas por dia, de sorte que não temos tempo nem para dormir direito, quanto mais para arrependimento” (Fiódor Dostoiévski, em Os irmãos Karamázov)
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226. “Pegaria toda essa mística e a eliminaria de uma vez em toda a terra russa para tornar todos os imbecis definitivamente racionais. E quanta prata e ouro iria para a Casa da Moeda!” (Fiódor Dostoiévski, em Os irmãos Karamázov)
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227. “Deus! só de pensar o quanto sacrificou o homem de fé, quantos esforços de toda espécie dispendeu gratuitamente por essa fantasia, e isso durante tantos milênios! Quem é esse que zomba tantos dos homens? (…) Com os diabos, o que eu faria depois disso com aquele que primeiro inventou Deus! Enforcá-lo num pé de álamo amargo seria pouco” (Fiódor Dostoiévski, em Os irmãos Karamázov)
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228. Não odieis os ateus, mestres do mal, os materialistas, os perversos dentre estes e também os bons, pois entre eles há muitos bons, principalmente em nossos dias” (Fiódor Dostoiévski, em Os irmãos Karamázov)
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229. “Na escola as crianças são cruéis: separadas, parecem anjos de Deus, mas juntas, sobretudo na escola, são constantemente muito cruéis” (Fiódor Dostoiévski, em Os irmãos Karamázov)
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230. “Veja como são os nossos filhinhos – isto é, não os seus, mas os nossos, os filhos dos miseráveis desprezados, porém nobres – aos nove anos de idade já conhecem a verdade na Terra. Já os ricos não atingem essa profundeza durante a vida inteira” (Fiódor Dostoiévski, em Os irmãos Karamázov)
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231. “Se eu não acreditasse na vida, se perdesse a confiança na mulher querida, se perdesse a confiança na ordem das coisas, se me convencesse até de que tudo, ao contrário, é uma desordem, um caos maldito e talvez até demoníaco, mesmo que todos os horrores da frustração humana me atingissem, ainda assim eu teria vontade de viver, e já que trouxe esse cálice aos lábios não o afastaria de mim enquanto não o esvaziasse!” (Fiódor Dostoiévski, em Os irmãos Karamázov)
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232. “Frequentemente uns moralistas tísicos e ranhosos, principalmente os poetas, chamam de torpe essa sede de viver” (Fiódor Dostoiévski, em Os irmãos Karamázov)
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233. “Tenho vontade de viver e vivo, ainda que contrariando a lógica. Vá que eu não acredite na ordem das coisas, mas a mim me são caras as folhinhas pegajosas que desabrocham na primavera, me é caro o azul do céu, é caro esse ou aquele homem de quem, não sei se acreditas, às vezes a gente não sabe por que gosta, me é caro um ou outro feito humano no qual a gente talvez tenha até deixado de acreditar há muito tempo e mesmo assim, movido pela lembrança antiga, o respeita de coração” (Fiódor Dostoiévski, em Os irmãos Karamázov)
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234. “‘Acho que todos no mundo devem, antes de tudo, passar a amar a vida’. ‘Passar a amar mais a vida que o sentido dela?'” (Fiódor Dostoiévski, em Os irmãos Karamázov)
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235. “Portanto, aceito Deus (…). Não é Deus que eu não aceito, entende isso, é o mundo criado por ele, o mundo de Deus que não aceito e não posso concordar em aceitar” (Fiódor Dostoiévski, em Os irmãos Karamázov)
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236. “(…) quanto mais tola mais direta. Quanto mais tola, mais clara. A tolice é curta e ingênua, já a inteligência tergiversa e se esconde. A inteligência é um canalha, mas a tolice é franca e honesta” (Fiódor Dostoiévski, em Os irmãos Karamázov)
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237. “Os pedintes, sobretudo os pedintes nobres, nunca deveriam aparecer, deveriam, sim, pedir esmolas pelos jornais. Ainda se pode amar o próximo de forma abstrata e às vezes até de longe, mas de perto quase nunca. Se tudo acontecesse como no palco, num balé, onde os pedintes, quando aparecem, estão vestidos em andrajos de seda e rendas rasgadas e pedem esmolas dançando graciosamente, bem, neste caso ainda se poderia admirá-los” (Fiódor Dostoiévski, em Os irmãos Karamázov)
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238. “De fato, às vezes se fala da crueldade ‘bestial’ do homem, mas isso é terrivelmente injusto e ofensivo para com os animais: a fera nunca pode ser tão cruel como o homem, tão artisticamente, tão esteticamente cruel. O tigre simplesmente trinca, dilacera, e é só o que sabe fazer. Não lhe passaria pela cabeça pregar as orelhas das pessoas com pregos por uma noite, mesmo que pudesse fazê-lo” (Fiódor Dostoiévski, em Os irmãos Karamázov)
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239. “Acho que se o diabo não existe e, portanto, o homem o criou, então o criou à sua imagem e semelhança” (Fiódor Dostoiévski, em Os irmãos Karamázov)
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240. “Eu não sofri para estrumar com meu ser, meus crimes e minhas lágrimas a futura harmonia de não sei quem” (Fiódor Dostoiévski, em Os irmãos Karamázov)
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241. “Não há preocupação mais constante e torturante para o homem do que, estando livre, encontrar depressa a quem sujeitar-se” (Fiódor Dostoiévski, em Os irmãos Karamázov)
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242. “Por se sujeitarem todos juntos eles se exterminaram uns aos outros a golpes de espada. Criavam os deuses e conclamavam uns aos outros: ‘Deixai vossos deuses e vinde sujeitar-se aos nossos, senão será a morte para vós e os vossos deuses'” (Fiódor Dostoiévski, em Os irmãos Karamázov)
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243. “Eu te digo que o homem não tem uma preocupação mais angustiante do que encontrar a quem entregar depressa aquela dádiva da liberdade com que esse ser infeliz nasce” (Fiódor Dostoiévski, em Os irmãos Karamázov)
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244. “Porque o segredo da existência humana não consiste apenas em viver, mas na finalidade de viver. Sem uma sólida noção da finalidade do viver o homem não aceitará viver e preferirá destruir-se a permanecer na Terra ainda que cercado só de pães” (Fiódor Dostoiévski, em Os irmãos Karamázov)
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245. “(…) ele se preparava para dar mais uma, no dia seguinte, mais uma brusca guinada e enveredar por um caminho novo, totalmente desconhecido e mais uma vez completamente só e, como antes, cheio de esperança, mas sem saber em quê, esperando muito, esperando demais da vida, sem, no entanto, conseguir ele mesmo definir nada do que havia em suas expectativas ou em seus desejos” (Fiódor Dostoiévski, em Os irmãos Karamázov)
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246. “A fraternidade não chegará antes que o senhor se torne irmão de fato de toda e qualquer pessoa. Nunca os homens, levados por nenhuma ciência e nenhuma vantagem, serão capazes de dividir pacificamente suas propriedades e seus direitos com os outros. Tudo será pouco para cada um deles e todos irão queixar-se, invejar e exterminar uns aos outros” (Fiódor Dostoiévski, em Os irmãos Karamázov)
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247. “Pois que em nosso século todos se dividiram em unidades, cada um se isola em sua toca, cada um se afasta do outro, esconde-se, esconde o que possui e termina ele mesmo por afastar-se das pessoas e afastá-las de si mesmo. Acumula riqueza isoladamente e pensa: como hoje sou forte e como sou abastado! mas o louco nem sabe que quanto mais acumula mais mergulha em sua loucura suicida. Porque se acostumou a esperar unicamente de si e separou-se do todo como unidade, acostumou sua alma a não acreditar na ajuda dos homens, nos homens e na humanidade, e não faz senão tremer diante do fato de que desaparecerão seu dinheiro e os direitos que adquiriu” (Fiódor Dostoiévski, em Os irmãos Karamázov)
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248. “O mundo proclamou a liberdade, sobretudo ultimamente,e eis o que vemos dessa liberdade deles: só escravidão e suicídio! Porque o mundo diz: ‘Tens necessidade e por isso satisfaze-as, porque tens os mesmos direitos que os homens mais ilustres e ricos. Não temas satisfazê-las e até procura multiplicá-las’ – eis a atual doutrina do mundo. É nisso que veem a liberdade. E o que resulta desse direito à multiplicação das necessidades? Para os ricos o isolamento e o suicídio espiritual, para os pobres, a inveja e o assassinato, porquanto esses direitos foram concedidos mas ainda não se indicaram os meios de satisfazer as necessidades” (Fiódor Dostoiévski, em Os irmãos Karamázov)
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249. “Compreendendo a liberdade como a multiplicação e o rápido saciamento das necessidades, deformam sua natureza porque geram dentro de si muitos desejos absurdos e tolos, os hábitos e as invenções mais disparatadas.Vivem apenas para invejar uns aos outros, para a luxúria, a soberba. Dar jantares, viajar, possuir carruagens, posição social e criados escravos eles já consideram uma necessidade, e para saciá-la sacrificam até a vida, a honra, o amos ao homem, e até se matam se não conseguem saciá-la (…). Eu vos pergunto: esse homem é livre?” (Fiódor Dostoiévski, em Os irmãos Karamázov)
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250. “É por isso que no mundo vem-se extinguindo cada vez mais a ideia de servir à humanidade, a ideia da fraternidade e da integridade dos homens, pois, em verdade, essa ideia já está sendo recebida até com zombaria; porque, como esse escravo se afastaria de seus hábitos, para onde iria se está tão acostumado a saciar as infinitas necessidades que ele mesmo inventou? Ele está isolado e pouco se importa com o todo. Eles chegaram a um ponto em que acumularam objetos demais, porém ficaram com alegria de menos” (Fiódor Dostoiévski, em Os irmãos Karamázov)
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251. “Qual deles é mais capaz de exaltar a grande ideia e servir a ela – o rico isolado ou este liberto da tirania dos objetos e dos costumes?” (Fiódor Dostoiévski, em Os irmãos Karamázov)
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252. “Vi em fábricas até crianças de dez anos: fracas, estioladas, encurvadas e já depravadas. Ambiente abafado, máquinas batendo, todo o dia trabalhando, palavras obscenas e vinho, vinho; é disso que precisa a alma de uma criança ainda tão pequena? Ela precisa de sol, de brincadeiras de criança, de exemplos luminosos em toda a parte e ao menos uma gotinha de amor” (Fiódor Dostoiévski, em Os irmãos Karamázov)
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253. “Homem, não te coloques acima dos animais: eles não têm pecado e tu, com tua grandeza, apodreces a Terra com tua aparição sobre ela e deixarás depois de ti tuas pegadas podres – infelizmente quase todos nós!” (Fiódor Dostoiévski, em Os irmãos Karamázov)
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254. “É até impossível imaginar toda a desonra e decadência moral a que um ciumento é capaz de acomodar-se sem quaisquer remorsos. E note-se que nem todos são propriamente almas torpes e sórdidas. ao contrário, de coração elevado, de amor puro, cheios de abnegação, podem ao mesmo tempo esconder-se debaixo de mesas, subornar diaristas torpes e acomodar-se à mais indecente sordidez da espionagem e da escuta atrás das portas” (Fiódor Dostoiévski, em Os irmãos Karamázov)
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254. “Poder-se-ia pensar: que amor é esse que precisa ser tão vigiado, e de que vale um amor que precisa ser tão intensamente vigiado? Pois é isso que nunca irá compreender o verdadeiro ciumento” (Fiódor Dostoiévski, em Os irmãos Karamázov)
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255. “Na natureza não existe nada ridículo, por mais que pareça ao homem, movido por seus preconceitos. Se os cães fossem capazes de refletir e criticar, nas relações sociais entre os homens, seus amos, certamente encontrariam um número igual – se não bem maior – de coisas que achariam ridículas; repito isso porque tenho a firme convicção de que nós fazemos muito mais tolices” (Fiódor Dostoiévski, em Os irmãos Karamázov)
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256. “Ao contrário, não tenho nada contra Deus. Claro, Deus é apenas uma hipótese… porém… reconheço que ele é necessário, para a ordem… para a ordem universal, etc… e se Ele não existisse seria preciso inventá-lo” (Fiódor Dostoiévski, em em Os irmãos Karamázov)
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257. “(…) porque se pode amar a humanidade mesmo sem crer em Deus” (Fiódor Dostoiévski, em Os irmãos Karamázov)
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258. “‘A questão é saber quais são minhas convicções, e não quantos anos eu tenho, não é verdade?’ ‘Quando tiver mais idade, você mesmo verá que importância tem a idade para as convicções'” (Fiódor Dostoiévski, em Os irmãos Karamázov)
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259. “Grigori é honesto, mas é um imbecil. Muitas pessoas são honestas justamente porque são imbecis” (Fiódor Dostoiévski, em Os irmãos Karamázov)
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260. “Deus te proteja, amável menino, de que um dia tenhas de pedir perdão à mulher amada por uma culpa tua! Particularmente à mulher amada, particularmente, por mais culpado que sejas perante ela! Porque a mulher é, meu irmão, o diabo sabe o que é, eu pelo menos entendo delas! Mas tenta te confessar culpado perante ela, ‘a culpa é minha, dirias, perdoa, desculpa’: aí desabará uma saraivada de censuras! Por nada nesse mundo ela te perdoará com franqueza e simplicidade, mas te humilhará até reduzir-se a um trapo, descontará até o que não houve, levará tudo em conta, não esquecerá nada, acrescentará coisas de sua parte e só então desculpará. E isso ainda sendo a melhor, a melhor entre elas! Raspará até a última mágoa e despejará tudo em tua cabeça” (Fiódor Dostoiévski, em Os irmãos Karamázov)
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261. “Os homens, a despeito de toda a sua indiscutível inteligência, tomam toda essa comédia por alguma coisa séria. Nisto reside sua tragédia. E então sofrem, é claro, mas… em compensação, vivem apesar de tudo, vivem na realidade, não na fantasia; porque o sofrimento é que é vida. Sem sofrimento, que prazer poderia haver em viver? – tudo se transformaria num infinito Te Deum: é uma coisa sagrada, porém meio chata” (Fiódor Dostoiévski, em Os irmãos Karamázov)
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262. “Quando a humanidade, sem exceção, tiver renegado Deus (e creio que essa era (…) virá), então cairá por si só, sem antropofagia, toda a velha concepção de mundo e, principalmente, toda a velha moral, e começará o inteiramente novo. Os homens se juntarão para tomar da vida tudo o que ela pode dar, mas visando unicamente à felicidade e à alegria neste mundo. O homem alcançará sua grandeza imbuindo-se do espírito de uma divina e titânica altivez, e surgirá o homem-deus. Vencendo, a cada hora, com sua vontade e ciência, uma natureza já sem limites, o homem sentirá assim e a cada hora um gozo tão elevado que este lhe substituirá todas as antigas esperanças de gozo celestial. Cada um saberá que é plenamente mortal, não tem ressurreição, e aceitará a morte com altivez e tranquilidade, como um deus. Por altivez compreenderá que não há razão para reclamar de que a vida é um instante, e amará seu irmão já sem esperar qualquer recompensa. O amor satisfará apenas um instante da vida, mas a simples consciência de sua fugacidade reforçará a chama desse amor tanto quanto ela antes se dissipava na esperança de um amor além-túmulo e infinito” (Fiódor Dostoiévski, em Os irmãos Karamázov)
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263. “Com efeito, todos esses quatro funcionários que compunham o corpo de jurados eram gente miúda, da baixa burocracia, grisalhos – só um deles levemente mais jovem -, pouco conhecidos em nossa sociedade, que vinham vegetando com parcos vencimentos, tinham quiçá, esposas velhas inapresentáveis onde quer que fosse, uma penca de filhos, talvez até descalços, encontravam num joguinho de baralho em algum lugar o máximo com que distrais seu ócio e, naturalmente, nunca haviam lido um único livro” (Fiódor Dostoiévski, em Os irmãos Karamázov)
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264. “Nosso horror está justamente no fato de que esses casos sombrios quase já não nos horrorizam mais! Porquanto o que deve nos horrorizar é o nosso hábito e não um delito isolado desse ou daquele indivíduo. Onde estão as causas de nossa indiferença, de nossa atitude quase morna diante de semelhantes casos, de semelhantes bandeiras da época, que nos profetizam um futuro nada invejável? Estariam no nosso cinismo, na exaustão precoce da inteligência e da imaginação de nossa sociedade ainda tão jovem mas tão precocemente caduca? Estariam em nossos princípios morais abalados até os fundamentos ou, enfim, talvez no fato de até carecermos totalmente desses princípios morais? Eu não tenho a solução para esses problemas, e todavia eles são angustiantes, e todo e qualquer cidadão não só deve, como é obrigado a sofrer por eles” (Fiódor Dostoiévski, em Os irmãos Karamázov)
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265. “Oh, também somos bons e magníficos, mas só quando nós mesmos nos sentimos bem e magnificamente. Ao contrário, somos até dominados – precisamente dominados – pelos mais nobres ideais, mas só sob a condição de que eles sejam atingidos por acaso, que nos caiam do céu sobre a mesa e, principalmente, que sejam gratuitos, gratuitos, que nada paguemos por eles. Abominamos pagar, mas em compensação gostamos muito de receber, e isso em todos os sentidos. Oh, dai-nos, dai-nos todos os bens possíveis da vida (precisamente todos os possíveis, menos não aceitamos) e sobretudo não imponhais obstáculo ao nosso direito ao que quer que seja, e então demonstraremos que também podemos ser bons e magníficos. Não somos cobiçosos, não, mas, não obstante, dai-nos dinheiro, mais, mais, e quanto mais for possível, e vereis com que magnanimidade, com que desdém pelo vil metal o esbanjaremos em uma noite num regabofe desenfreado” (Fiódor Dostoiévski, em Os irmãos Karamázov)
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266. “Todo ser humano é um resultado de pai e mãe. Pode-se não reconhecê-los, não amá-los, pode-se duvidar deles. Mas eles aí estão: seu rosto, suas atitudes, suas maneiras e manias, suas ilusões e esperanças, a forma de suas mãos e seus dedos do pé, a cor dos olhos e dos cabelos, seu modo de falar, suas ideias, provavelmente a idade de sua morte, tudo isso passou para nós” (J. M. G. Le Clezio, em O africano)
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267. “Each time he took a walk, he felt as though he were leaving himself behind, and by giving himself up to the movement of the streets, by reducing himself to a seeing eye, he was able to scape the obligation to think, and this, more than anything else, brought him a measure of peace, a salutary emptiness within. The world was outside him, and the speed with which it kept changing made it impossible for him to dwell on any one thing for very long. Motion was of the essence, the act os putting one foot in front other and allowing himself to follow the drift of his own body. By wandering aimlessly, all places became equal, and it no longer mattered where he was” (Paul Auster, em City of glass)
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268. “But beggars and performers make up only a small part of the vagabond population. They are the aristocracy, the elite of the fallen. Far more numerous are those with nothing to do, with nowhere to go. Many are drunks – but that term does not do justice to the devastation they embody. Hulks of despair, clothed in rags, their faces bruised and bleeding, they shuffle through the streets as though traffic, collapsing on sidewalks – they seem to be everywhere the moment you look for them. Some will starve to death, others will die of exposure, still others will be beaten or burned or tortured. For every soul lost in this particular hell, there are several others locked inside madness—unable to exit to the world that stands at the threshold of their bodies. Even though they seem to be there, they cannot be counted as present. The man, for example, who goes everywhere with a set of drumsticks, pounding the pavement with them in a reckless, nonsensical rhythm, stooped over awkwardly as he advances along the street, beating and beating away at the cement. Perhaps he thinks he is doing important work. Perhaps, if he did not do what he did, the city would fall apart. Perhaps the moon would spin out of its orbit and come crashing into the earth. There are the ones who talk to themselves, who mutter, who scream, who curse, who groan, who tell themselves stories as if to someone else” (Paul Auster, em City of glass)
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269. “Does this mean that reality only contains things that can be detected, directly or indirectly, by our senses and by the methods of science? What about things like jealousy and joy, happiness and love? Are these not also real? Yes, they are real. But they depend for their existence on brains: human brains, certainly, and probably the brains of other advanced animal species, such as chimpanzees, dogs and whales, too. Rocks don’t feel joy or jealousy, and mountains do not love” (Richard Dawkins, em The magic of reality)
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270. Suppose the dealer shuffles the pack and deals them out to four players, so that they each have 13 cards. I pick up my hand and gasp in astonishment. I have a complete hand of 13 spadesl All the spades. I am too startled to go on with the game, and I show my hand to the other three players, knowing they will be as amazed as I am. But then, one by one, each of the other players lays his cards on the table, and the gasps of astonishment grow with each hand. Every one of them has a ‘perfect’ hand: one has 13 hearts, another has 13 diamonds, and the last one has 13 clubs. Would this be supernatural magic? We might be tempted to think so. Mathematicians can calculate the chance of such a remarkable deal happening purely by chance. It turns out to be almost impossibly small: 1 in 53,644,737,765,488,792,839,237,440,000. If you sat down and played cards for a trillion years, you might on one occasion get a perfect deal like that. But – and here’s the thing – this deal is no more unlikely than every’ other deal of cards that has ever happened! The chance of any particular deal of 52 cards is 1 in 53,644,737,765,488,792, 839,237,440,000 because that is the total number of all possible deals. It is just that we don’t notice any particular pattern in the vast majority ot deals that are made, so they don’t strike us as anything out ot the ordinary. We only notice the deals that happen to stand out in some way” (Richard Dawkins, em The magic of reality)
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271. “Given enough generations, ancestors that look like newts can change into descendants that look like frogs. Given even more generations, ancestors that look like fish can change into descendants that look like monkeys. Given yet more generations, ancestors that look like bacteria can change into descendants that look like humans. And this is exactly what happened. This is the kind of thing that happened in the history of every animal and plant that has ever lived. The number of generations required is larger than you or I can possibly imagine, but the world is thousands of millions of years old, and we know from fossils that life got started more than three and a half billion years ago, so there has been plenty of time for evolution to happen” (Richard Dawkins, em The magic of reality)
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272. “In fact, as we shall see, most ‘solid’ matter consists of empty space (…) even the legendarily hard diamond is almost entirely empty space! The same is true of all rocks, no matter how hard and solid. It is true of iron and lead. It is also true of even the hardest wood. And it is true of you and me (Richard Dawkins, em The magic of reality)
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273. “Believe it or not, your 185-million-greats-grandtather was — a fish. So was your 185-million-greats-grandmother, which is just as well or they couldn’t have mated with each other and you wouldn’t be here (…) Yet if you walk steadily from one end of the bookshelf to the other, you 11 see a human at one end and a fish at the other. And lots of other interesting great-… great- grandparents in between, which, as we shall soon see, include some animals that look like apes, others that look like monkeys, others that look like shrews, and so on” (Richard Dawkins, em The magic of reality)
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274. “But now is the moment to return, as I promised I would, to the question of why, when you cut a piece of, say, lead into smaller and smaller pieces, you eventually reach a point where, if you cut it again, it is no longer lead. An atom of lead has 82 protons. If you split the atom so that it no longer has 82 protons it ceases to be lead” (Richard Dawkins, em The magic of reality)
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275. “Dust mites are distantly related to spiders but too small to see except as tiny specks. There are thousands of them in every home, crawling through every carpet and every bed, quite probably including yours. If primitive peoples had known about them, you can imagine what myths and legends they might have invented to explain them! But before the invention of the microscope, their existence was not even dreamed of — and so there are no myths about them. And, small as it is, even a dust mite contains more than a hundred trillion atoms (…) And atoms are far far smaller even than bacteria. The whole world is made of incredibly tiny things, much too small to be visible to the naked eye – and yet none of the myths or so-called holy books that some people, even now, think were given to us by an all-knowing god, mentions them at all! In fact, when you look at those myths and stories, you can see that they don t contain any of the knowledge that science has patiently worked out. They don’t tell us how big or how old the universe is; they don’t tell us how to treat cancer; they don’t explain gravity or the internal combustion engine; they don’t tell us about germs, or nuclear fusion, or electricity, or anaesthetics, In fact, unsurprisingly, the stories in holy hooks don t contain any more information about the world than was known to the primitive peoples who first started telling them! If these ‘holy books’ really were written, or dictated, or inspired, by all-knowing gods, don’t you think it’s odd that those gods said nothing about any of these important and useful things?” (Richard Dawkins, em The magic of reality)
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276. “The Aztecs believed that they had to sacrifice human victims to appease the sun god, otherwise he would not rise in the east each morning. Apparently it didn’t occur to them to try the experiment of not making sacrifices, to see whether the sun might, just possibly, rise anyway” (Richard Dawkins, em The magic of reality)
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277.
“1. Go out into a big field with a football and plonk it down to represent the sun.
2. Then walk 25 metres away and drop a peppercorn to represent the Earth’s size and its distance from the sun.
3. The moon, to the same scale, would be a pinhead, and it would be only 5 centimetres away from the peppercorn.
4. But the nearest other star, Proxima Centauri, to the same scale, would be another (slightly smaller) football located about… wait for it… six and a half thousand kilometres away!” (Richard Dawkins, em The magic of reality)
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278. “Supernovas, unlike ordinary stars, can create elements even heavier than iron: lead, for example, and uranium. The titanic explosion of a supernova scatters all the elements that the star, and then the supernova, have made, including the elements necessary for life, far and wide through space. Eventually the clouds of dust, rich in heavy elements, will start the cycle again, condensing to make new stars and planets. That is where the matter in our planet came from, and that is why our planet contains the elements that are needed to make us, the carbon, nitrogen, oxygen and so on: they come from the dust that remained after a long-gone supernova lit up the cosmos. That is the origin of the poetic phrase ‘We are stardust. It is literally true. Without occasional (but very rare) supernova explosions, the elements necessary for life would not exist” (Richard Dawkins, em The magic of reality)
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279. “And now here is something amazing. Astronomers have looked at the expansion and worked backwards through time. It is as though they constructed a movie of the expanding universe, with the galaxies rushing apart, and then ran the film in reverse. Instead of hurtling away from each other, in the backwards film the galaxies converge. And from that film the astronomers can calculate back to the moment when the expansion of the universe must have begun. They can even calculate when that moment was. That’s how they know it was somewhere between 13 and 14 billion years ago. That was the moment when the universe itself began – the moment called the ‘big bang’” (Richard Dawkins, em The magic of reality)
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280. “In California in March 1997 a religious cult called Heaven’s Gate came to a sad end when all 39 of its members took poison. They killed themselves because they believed that a UFO from outer space would take their souls to another world. At the time a bright comet called Hale-Bopp was prominent in the sky and the cult believed – because their spiritual leader told them so – that an alien spacecraft was accompanying the comet on its journey. They bought a telescope to observe it, but then sent it back to the shop because it ‘didn’t work’. How did they know it didnt work? Because they couldn’t see the spacecraft through it!” (Richard Dawkins, em The magic of reality)
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281. “One man, for instance, believed he had been abducted for no better reason than that he often got nosebleeds. His theory was that the aliens had put a radio transmitter in bis nose to spy on him. He also thought he might be part alien himself, on the grounds that his colouring was a little darker than his parents’. A surprisingly large number of Americans, many of them otherwise normal, sincerely believe that they personally have been taken aboard flying saucers and been the victims of horrific experiments conducted by little grey men with large heads and huge, wraparound eyes. There is a whole mythology of‘alien abductions’, which is as rich, as colourful and as detailed as the mythology of ancient Greece and the gods of Mount Olympus. But these alien abduction myths are recent, and you can actually go and talk to people who believe they have been abducted: apparently normal sane, level-headed people, who will tell you they saw the aliens face to face; actually tell you what the aliens look like, and what they say while performing their nasty experiments and sticking needles into people (the aliens speak English, of course!)” (Richard Dawkins, em The magic of reality)
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282. “Recovering ‘lost’ memory is a whole other story, by the way, which is interesting in its own right. When we think we remember a real incident, we may only be remembering another memory . .. and so on back to what may or may not have been a real incident originally. Memories of memories of memories can become progressively distorted. There is good evidence that some of our most vivid memories are actually false memories. And false memories can be deliberately planted by unscrupulous ‘therapists’” (Richard Dawkins, em The magic of reality)
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283. “Is there really life on other planets? Nobody knows. If you forced me to give an opinion one way or the other, I’d say yes, and probably on millions of planets. But who cares about an opinion? There is no direct evidence. One of the great virtues of science is that scientists know when they don’t know the answer to something. They cheerfully admit that they don’t know. Cheerfully, because not knowing the answer is an exciting challenge to try to find it” (Richard Dawkins, em The magic of reality)
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284. “Child psychologists have shown that very young children, when asked why certain rocks are pointy, reject scientific causes as an explanation and prefer the answer: ‘So that animals can scratch themselves when they get itchy.’ Most children grow out of that kind of explanation for the pointy rocks. But quite a lot of adults seem unable to shake off the same kind of explanation when it comes to major misfortunes like earthquakes, or good fortune such as lucky escapes from earthquakes” (Richard Dawkins, em The magic of reality)
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285. “Let’s put that in the language of Charles Darwin, the language of natural selection: those individual animals that act as though Sod’s Law were true are more likely to survive and reproduce than those individual animals that follow Pollyanna’s Law” (Richard Dawkins, em The magic of reality)
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286. “Nem toda correspondência possível, no campo da linguagem, aponta para algo relevante no mundo dos fótons e dos átomos. Senão, teríamos de supor que, ao escrever Romeu e Julieta – no qual dois jovens de famílias inimigas e de sexos opostos se sentem irresistivelmente atraídos um para o outro, o que causa a destruição de ambos -, William Shakespeare estava dizendo algo significativo sobre o elétron e o pósitron, partículas de cargas elétricas opostas que são inexoravelmente atraídas uma para a outra e que se aniquilam mutuamente no momento de colisão” (Carlos Orsi e Daniel Bezerra, em Picaretagem quântica: como livros de esoterismo e autoajuda distorcem a Ciência para te enganar)
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287. Metáforas são boas para iluminar a vida, mas se levadas além de seus limites, acabam provocando confusão: não é porque sua namorada é linda como uma flor que você deve adubá-la” (Carlos Orsi e Daniel Bezerra, em Picaretagem quântica: como livros de esoterismo e autoajuda distorcem a Ciência para te enganar)
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288. “A hipótese de que o ‘campo de consciência’ é o ingrediente fundamental do Universo abre a possibilidade – eis o principal fator de marketing do misticismo quântico – de que a realidade seja maleável, no sentido de que pode ser forjada na fornalha da força de vontade: se um número grande o suficiente de pessoas acreditar, digamos, na paz mundial, ou que sorvete de morango cura o câncer, o campo universal poderia ser redefinido para acomodar esses novos conceitos. O problema, que deve parecer evidente, é que isso simplesmente não acontece. A realidade não é democrática: dos primórdios da humanidade até o período clássico da civilização grega, o consenso parece ter sido o de que a Terra era plana, mas não há nenhum indício de que nosso planeta tenha sido achatado como uma panqueca durante todo esse tempo. Outros exemplos abundam: antes de Galileu realizar suas primeiras observações da Lua, o consenso, no mundo ocidental, dizia que nosso satélite natural tinha de ser uma esfera perfeita e sem manchas. Se houvesse mesmo um ‘campo de consciência’ construindo a realidade, o grande cientista italiano jamais teria observado as montanhas, os vales e as crateras lunares” (Carlos Orsi e Daniel Bezerra, em Picaretagem quântica: como livros de esoterismo e autoajuda distorcem a Ciência para te enganar)
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289. “Não há mentalização que faça multiplicarem-se as vagas nos cursos superiores mais desenvolvidos. Além disso, há alguma evidência experimental de que técnicas de ‘visualização’ – em que a pessoa se esforça para ver a si mesma já na posição almejada – são, na verdade, contraproducentes. De acordo com o psicólogo britânico Richard Wiseman, pessoas que se valem de estratégias assim acabam sendo levadas a subestimar o esforço realmente necessário para conquistar o objetivo e, por isso, se frustram com mais facilidade” (Carlos Orsi e Daniel Bezerra, em Picaretagem quântica: como livros de esoterismo e autoajuda distorcem a Ciência para te enganar)
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290. “O estado atual da Mecânica Quântica, ao sugerir que a realidade pode sofrer de uma indeterminação fundamental, não parece inspirar sentimentos de espanto ou humildade, mas o oposto: a tentação de se pôr o ego humano no papel de Grande Determinador. Para escritores de autoajuda, é um meio fácil de adular o leitor e, ao mesmo tempo, de culpá-lo quando os clichês de sempre não funcionam. A consciência humana é o centro de nossas vidas e preocupações cotidianas, mas não há motivo algum para pô-la, também, no centro do cosmo. Fazer isso é negar o que talvez seja a principal contribuição da ciência para a compreensão filosófica do lugar do homem no Universo: um animal feito de poeira de estrelas, irmão das árvores, dos sapos e das bactérias, habitando a periferia de uma galáxia igual a bilhões de outras, tentando, como uma criança que cata conchas na praia e pondera o mar, entender a imensidão” (Carlos Orsi e Daniel Bezerra, em Picaretagem quântica: como livros de esoterismo e autoajuda distorcem a Ciência para te enganar)
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291. “O escritor gostaria que acreditássemos que, ao contrário daqueles escrevinhadores que podem dizer com antecedência como o livro deles vai acabar, sua imaginação é tão poderosa, e seus personagens tão reais e vívidos, que ele não tem como controlá-los. A melhor das hipóteses aqui, mais uma vez, é que não se trata da verdade, pois tal noção pressupõe a perda do desejo autoral, a abdicação da intenção. A responsabilidade fundamental do romancista é criar significado, e, se de alguma maneira esse trabalho é deixado para os personagens, ele está necessariamente evitando a responsabilidade ” (Jonathan Franzen, em Como ficar sozinho)
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292. “… meu trabalho representa uma campanha ativa contra os valores de que não gosto: sentimentalidade, narrativa débil, prosa abertamente lírica, solipsismo, autocomplacência, misoginia e outros provincianismos, jogos de palavra estéreis, didatismo patente, simplicidade moral, dificuldade desnecessária, fetiches de informação, e por aí vai” (Jonathan Franzen, em Como ficar sozinho)
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293. “Nós vivemos no tempo — ele nos prende e nos molda —, mas eu nunca achei que entendia isso muito bem. E não me refiro a teorias de como ele se dobra e volta para trás, ou se pode existir em outro lugar em versões paralelas. Não, eu me refiro ao tempo comum, rotineiro, que os relógios nos mostram que passa regularmente; tique-taque, clique-claque. Existe algo mais plausível do que um segundo ponteiro? E, no entanto, basta o menor prazer ou dor para nos ensinar a maleabilidade do tempo. Algumas emoções o aceleram, outras o retardam; às vezes, ele parece desaparecer – até o ponto que ele realmente desaparece, para nunca mais voltar” (Julian Barnes, em O sentido de um fim)
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294. “Mas foi na escola que tudo começou, então eu preciso voltar brevemente a alguns incidentes que viraram anedotas, a algumas lembranças aproximadas que o tempo deformou em certezas. Se eu não posso mais ter certeza dos acontecimentos reais, posso ao menos ser fiel às impressões que aqueles fatos deixaram. É o melhor que posso fazer” (Julian Barnes, em O sentido de um fim)
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295. “A escola ficava no centro de Londres, e todo dia saíamos de nossos diferentes bairros e passávamos de um sistema de controle para outro. Naquela época, as coisas eram mais simples: menos dinheiro, nenhum aparelho eletrônico, pouca tirania da moda, nenhuma namorada. Não havia nada para nos distrair da nossa obrigação humana e filial de estudar, passar nos exames, usar nossas qualificações para arranjar um emprego e depois organizar um modo de vida mais satisfatório do que o dos nossos pais, que iriam aprová-lo, embora comparando-o em segredo com seus próprios começos de vida, que tinham sido mais simples e, portanto, superiores. Nada disso, é claro, jamais era verbalizado: o requintado darwinismo social da classe média inglesa sempre permanecia implícito” (Julian Barnes, em O sentido de um fim)
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296. “Sim, é claro que éramos pretensiosos — para que mais serve a juventude? Nós usávamos termos como ‘Weltanschauung’ e ‘Sturm und Drang’, gostávamos de dizer ‘Isso é filosoficamente autoevidente’ e assegurávamos uns aos outros que a primeira obrigação da imaginação era ser transgressora” (Julian Barnes, em O sentido de um fim)
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297. “— Você não gostaria de dividir conosco seus pensamentos?
— Não sei, senhor.
— O que é que você não sabe?
— Bem, num certo sentido, eu não posso saber o que é que eu não sei. Isso é filosoficamente autoevidente” (Julian Barnes, em O sentido de um fim)
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298. “Por que ele e não nós? Por que nenhum de nós jamais chegou a ter nem a experiência de fracassar em conseguir uma namorada? Pelo menos a humilhação disso teria contribuído para ficarmos mais sábios, teria nos dado algo de que poderíamos nos gabar negativamente. (“Na realidade, ‘um imbecil pustulento com o carisma de uma sola de tênis’ foram as palavras exatas dela.”) Nós sabíamos por nossas leituras dos grandes livros que Amor envolvia Sofrimento, e teríamos de bom grado praticado o Sofrimento se houvesse uma promessa implícita, talvez até lógica, de que o Amor poderia estar a caminho” (Julian Barnes, em O sentido de um fim)
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299. “A História é aquela certeza fabricada no instante em que as imperfeições da memória se encontram com as falhas de documentação” (Julian Barnes, em O sentido de um fim)
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300. “Afinal de contas, ‘aquela época não eram os anos 1960?’ Sim, eram, mas como eu disse, isso dependia de onde — e com quem — você estava. Se você permitir uma breve aula de história: a maioria das pessoas não experimentou os “anos 1960” até os anos 1970. O que significa, logicamente, que a maioria das pessoas nos anos 1960 ainda estava experimentando os 1950” (Julian Barnes, em O sentido de um fim)
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301. “— Eu não sei qual é a estatística ligando inteligência a suicídio — respondi.
— Sim, Tony, mas você entende o que eu quero dizer.
— Não, na realidade não entendo.
— Bem, digamos assim: você é um rapaz inteligente, mas não tão inteligente que pudesse vir a fazer uma coisa dessas.
Eu olhei para ela sem pensar. Falsamente encorajada, ela continuou:
— Mas quando você é muito inteligente, eu acho que um parafuso pode se soltar” (Julian Barnes, em O sentido de um fim)
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302. “Ele era mesmo inteligente demais. Quando você é tão inteligente assim consegue convencer a si mesmo de qualquer coisa. Você simplesmente deixa de lado o bom-senso. Foi o cérebro que o fez enlouquecer, por isso ele fez aquilo” (Julian Barnes, em O sentido de um fim)
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303. “Ele tinha uma cabeça melhor e um temperamento mais rigoroso do que o meu; ele pensava logicamente, e depois agia de acordo com a conclusão do pensamento lógico. Enquanto a maioria de nós, eu desconfio, faz o contrário: nós tomamos uma decisão instintiva, depois construímos uma infraestrutura de raciocínio para justificá-la. E chamamos o resultado disso de bom-senso” (Julian Barnes, em O sentido de um fim)
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304. “Algum inglês disse que o casamento é uma refeição comprida e sem graça onde servem o pudim primeiro” (Julian Barnes, em O sentido de um fim)
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305. “Na maturidade da vida, você espera um certo descanso, não é? Você acha que merece isso. Eu, pelo menos, achava. Mas aí você começa a entender que premiar a virtude não compete à vida” (Julian Barnes, em O sentido de um fim)
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306. “Talvez eu simplesmente me sinta mais seguro com a história que foi mais ou menos acordada. Ou talvez seja o mesmo paradoxo de novo: a história que acontece debaixo do nosso nariz deveria ser a mais clara, e no entanto é a mais deliquescente. Nós vivemos no tempo, ele nos limita e nos define, e o tempo supostamente mede a história, não é? Mas se não podemos entender o tempo, não podemos alcançar seus mistérios de ritmo e progresso, que chance nós temos com a história — mesmo o nosso pequeno, pessoal e praticamente não documentado pedaço dela?” (Julian Barnes, em O sentido de um fim)
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307. “Eu descobri que esta pode ser uma das diferenças entre a juventude e a velhice: quando somos jovens, inventamos futuros para nós mesmos; quando somos velhos, inventamos diferentes passados para os outros” (Julian Barnes, em O sentido de um fim)
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308. “Mas por que deveríamos esperar que a idade nos abrandasse? Se não cabe à vida recompensar o mérito, por que caberia a ela proporcionar-nos sentimentos ternos e confortadores perto do seu final?” (Julian Barnes, em O sentido de um fim)
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309. “Quantas vezes nos contamos a história da nossa vida? Quantas vezes nos ajustamos, embelezamos, editamos espertamente? E quanto mais longa a vida, menos são os que ainda estão por perto para nos contradizer, para nos lembrar que nossa vida não é a nossa vida, mas apenas a história que nós contamos a respeito da nossa vida. Contamos para outros, mas — principalmente — para nós mesmos” (Julian Barnes, em O sentido de um fim)
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310. “Não, o que eu quero dizer é que, quando você tem vinte anos, mesmo que você se sinta confuso e incerto a respeito dos seus objetivos, você tem um forte senso do que é a vida, e do que você é na vida, e pode vir a ser. Mais tarde… mais tarde há mais incerteza, mais sobreposição, mais retrocesso, mais falsas lembranças. Na juventude, conseguimos nos lembrar de toda a nossa curta vida. Mais tarde, a memória vira uma coisa feita de retalhos e remendos. É um pouco como a caixa preta que os aviões carregam para registrar o que acontece num desastre. Se nada der errado, a fita se apaga sozinha. Então, se você se arrebenta, o motivo se torna óbvio; se você não se arrebenta, então o registro da sua viagem é muito menos claro” (Julian Barnes, em O sentido de um fim)
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311. “Então, em vez disso, revi as lembranças que tinha, as imagens muito antigas e as recém-chegadas. Eu as coloquei contra a luz, revirando-as em meus dedos, tentando ver se elas agora significavam algo diferente. Comecei a reexaminar o meu eu mais jovem, até onde é possível fazer isso. É claro que eu tinha sido estúpido e ingênuo — todos nós somos; mas eu sabia que não devia exagerar estas características, porque isso é apenas um modo de você elogiar a si mesmo por aquilo que você se tornou” (Julian Barnes, em O sentido de um fim)
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312. “Na escola, você aprendeu sobre substâncias químicas em tubos de ensaio, equações que descrevem movimento e talvez alguma coisa sobre a fotossíntese — que será mencionada adiante —, mas o mais provável é que você não tenha aprendido nada sobre morte, risco, estatísticas a ciência que irá matá-lo ou curá-lo. O furo em nossa cultura está se transformando em abismo: a medicina baseada em evidências, a suprema ciência aplicada, contém algumas das ideias mais inteligentes dos dois últimos séculos e salvou milhões de vidas, mas nunca houve uma única exposição sobre o assunto no Museu de Ciências de Londres” (Ben Goldacre, em Ciência picareta)
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313. “A purificação e a redenção são muito recorrentes nos rituais porque existe uma clara e onipresente necessidade desses temas: todos nós fazemos coisas lamentáveis como resultado de nossas próprias circunstâncias, e novos rituais são frequentemente inventados em resposta às novas circunstâncias. Em Angola e Moçambique, surgiram rituais de purificação e limpeza para as crianças afetadas pela guerra, especialmente para as antigas crianças-soldados. Esses são rituais de cura nos quais a criança é purificada do pecado e da culpa, da ‘contaminação’ da guerra e da morte (contaminação é uma metáfora recorrente em todas as culturas, por motivos óbvios); a criança também é protegida das consequências de suas ações prévias, ou seja, ela é protegida da retaliação pelos espíritos vingadores daqueles que matou. Como diz um relatório do Banco Mundial de 1999: ‘Esses rituais de limpeza e purificação para as crianças-soldados têm a aparência do que os antropólogos chamam de ritos de transição. Isto é, a criança passa por uma mudança de status simbólico de alguém que existiu em um domínio de violação sancionada da norma ou de suspensão da norma (isto é, assassinato, guerra) para alguém que deve agora viver em um domínio de normas sociais e comportamentais pacíficas e se conforma a elas'” (Ben Goldacre, em Ciência picareta)
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314. “Não acho que eu esteja indo longe demais. No que chamamos de mundo, ocidental desenvolvido, buscamos redenção e purificação das formas mais extremas de nossa indulgência material: nos enchemos de drogas, bebidas, comidas ruins e outros excessos, sabemos que é um comportamento inadequado e ansiamos pela proteção ritualística diante das consequências, por um ‘ritual de transição’ público que celebre nosso retorno às normas comportamentais mais saudáveis” (Ben Goldacre, em Ciência picareta)
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315. “(…) se você só deseja fazer um exercício de respiração, tudo bem. Mas os criadores da ginástica para o cérebro vão muito além. Seu bocejo especial, teatral e patenteado causará uma ‘maior oxidação para um funcionamento eficiente e relaxado’. A oxidação é o que causa a ferrugem. Não é a mesma coisa que oxigenação, que é o que suponho que queiram dizer” (Ben Goldacre, em Ciência picareta)
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316. “Você pode fazer uma intervenção perfeitamente sensata, como um copo d’água e uma pausa para exercícios, mas acrescente as bobagens, dê um toque mais técnico e irá parecer mais inteligente. Isso destaca o efeito placebo, mas você também pode pensar se o objetivo básico não é algo muito mais cínico e lucrativo: transformar o bom senso em objeto de direitos autorais, único, patenteado e privado. Veremos isso repetidamente, em uma escala maior, no trabalho dos profissionais de saúde dúbios e, especificamente, no campo do “nutricionismo”, porque o conhecimento científico e os conselhos sensatos sobre alimentação são gratuitos e de domínio público. Qualquer pessoa pode usá-los, entendê-los, vendê-los ou simplesmente distribuí-los. A maioria das pessoas já sabe o que constitui uma dieta saudável. Se você quiser ganhar dinheiro com isso, terá de abrir espaço no mercado e, para fazer isso, você terá de complicar e colocar seu próprio selo dúbio. Existe algum dano nesse processo? Bom, certamente é um desperdício e mesmo no Ocidente decadente, enquanto entramos em uma provável recessão, parece peculiar pagar por conselhos básicos de dieta ou por pausas para exercícios na escola. Mas existem outros perigos ocultos, que são muito mais ameaçadores. Esse processo de profissionalizar o óbvio alimenta um senso de mistério ao redor da ciência e dos conselhos de saúde, que é desnecessário e destrutivo. Mais do que qualquer coisa, mais do que a propriedade desnecessária do óbvio, ele descapacita as pessoas. Com demasiada frequência, essa privatização espúria do bom senso está acontecendo em áreas em que poderíamos assumir o controle, fazer por nós mesmos, sentir nossa própria potência e nossa capacidade para tomar decisões sensatas, mas, em vez disso, estamos alimentando nossa dependência de pessoas e sistemas externos e caros” (Ben Goldacre, em Ciência picareta)
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317. “Antes de começarmos, é importante entender como os cosméticos — e especificamente os cremes hidratantes — realmente funcionam, pois não deve haver mistérios aqui. Em primeiro lugar, você deseja que seu creme caro hidrate sua pele. Todos eles fazem isso, e a vaselina cumpre muito bem essa função; na verdade, grande parte da pesquisa inicial e importante em cosméticos voltava-se para preservar as propriedades umectantes da vaselina ao mesmo tempo que se evitasse sua oleosidade, e esse desafio técnico foi resolvido há décadas. Hydrobase, cujo frasco de meio litro pode ser comprado na farmácia por 10 libras, cumpre essa função de modo excelente” (Ben Goldacre, em Ciência picareta)
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318. “Geralmente, as empresas de cosméticos pegam informações altamente teóricas e livrescas sobre o modo como as células funcionam — os componentes em nível molecular ou o comportamento das células em uma placa de vidro — e fingem que essa é a mais recente descoberta de algo que irá deixá-la mais bonita. “Esse componente molecular”, dizem, coro um floreio, “é crucial para a formação de colágeno.” E isso é totalmente verdade (juntamente com muitos outros aminoácidos que são usados por seu corpo para montar proteínas em articulações, pele e em tudo o mais, mas não há motivo para acreditar que ele falte a alguém, nem que passá-lo em seu rosto fará alguma diferença em sua aparência. Em geral, as substâncias não são bem absorvidas pela pele porque o propósito dela é ser relativamente impermeável. Se você se sentar numa banheira cheia de feijões assados em uma brincadeira num evento beneficente, não vai engordar nem começar a arrotar. Apesar disso, em qualquer visita à farmácia (eu recomendo que você faça isso), é possível encontrar um conjunto fenomenal de ingredientes mágicos à venda. Valmont Cellular DNA Complex é feito de “DNA de ovas de salmão especialmente tratadas” (“Infelizmente, esfregar salmão em seu rosto não teria o mesmo efeito”, disse o The Times em sua crítica), mas é espetacularmente improvável que o DNA — uma molécula muito grande, sem dúvida — seja absorvido por sua pele ou que, de fato, tenha qualquer uso para a atividade sintética que acontece nela, mesmo sendo absorvido. Você provavelmente não sofre de falta de componentes de DNA em seu corpo. Já existe uma grande quantidade deles. No entanto, pensando bem, se o DNA do salmão fosse absorvido por inteiro por sua pele, então você estaria absorvendo padrões alienígenas, ou melhor, de peixe, em suas células; isto é, você absorveria as instruções para gerar células de peixe, o que poderia não ser muito bom, já que você é um ser humano” (Ben Goldacre, em Ciência picareta)
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319. “Como exemplo perfeito, existem muitos cremes (e outros tratamentos de beleza) que dizem levar oxigénio diretamente para sua pele. Muitos deles contêm peróxido. Se você realmente quiser se convencer de sua eficácia, a fórmula química deste composto é H2O2, que poderia até ser compreendido como água ‘com algum oxigênio extra’, embora as fórmulas químicas não funcionem desse modo — afinal de contas, um montinho de ferrugem é uma ponte de ferro ‘com algum oxigênio extra’, e você não ia supor que isso oxigenaria sua pele. Mesmo se dermos a eles o benefício da dúvida e fingirmos que esses tratamentos realmente vão levar oxigênio à superfície da pele e que ele irá penetrar nas células, que bem isso traria? Seu corpo está constantemente monitorando a quantidade de sangue e nutrientes que fornece aos tecidos, assim como a quantidade de pequenos vasos capilares que alimentam determinada área, e mais vasos aparecerão nas áreas com baixo oxigênio, porque esse é um bom indicador da necessidade de maior suprimento de sangue. Mesmo que fosse verdadeira a afirmação de que o oxigênio no creme penetra em seus tecidos, seu corpo simplesmente diminuiria o suprimento de sangue para aquela parte da pele, marcando um gol contra homeostático. Na realidade, o peróxido de hidrogênio é simplesmente uma substância química corrosiva, que cria uma queimadura leve em potências baixas. Isso pode explicar a sensação fresca e radiante” (Ben Goldacre, em Ciência picareta)
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320. “Quero deixar uma coisa bem clara: não estou em uma cruzada em prol dos consumidores. Como a loteria federal, o setor de cosméticos joga com os sonhos das pessoas, e elas são livres para desperdiçar seu dinheiro. Posso muito bem considerar os cosméticos de luxo — e outras formas de charlatanismo — como um imposto voluntário, especial e autoadministrado sobre as pessoas que não entendem a ciência corretamente. Eu também seria o primeiro a concordar que as pessoas não compram cosméticos caros só porque acreditam em sua eficácia, porque sei que é um pouco mais complicado do que isso: eles são bens de luxo, itens de status e são comprados por todo o tipo de motivos interessantes. Mas isso não é totalmente neutro do ponto de vista moral. Em primeiro lugar, os fabricantes desses produtos vendem atalhos para fumantes e obesos; eles promovem a ideia de que um corpo saudável pode ser obtido usando-se poções caras em vez de se aplicar a solução simples e tradicional de fazer exercícios e comer verduras. Esse é um tema recorrente por todo o mundo da ciência picareta” (Ben Goldacre, em Ciência picareta)
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321. “Mesmo que consideremos a possibilidade de sua existência, a afirmação da ‘memória da água’ tem grandes furos conceituais, e você mesmo pode percebê-los. Se a água tem uma memória, como dizem os homeopatas, e essa memória funciona em uma diluição de 1060, então, neste momento, toda a água deveria ser uma diluição homeopática curativa de todas as moléculas no mundo. A água flui pelo globo terrestre há muito tempo, afinal de contas, e a água em meu corpo, enquanto eu me sento aqui, digitando, em Londres, já passou pelos corpos de muitas outras pessoas. Talvez algumas das moléculas de água que estão em meus dedos enquanto eu digito esta sentença estejam atualmente em seu globo ocular. Talvez algumas das moléculas de água que se encontram em meus neurônios enquanto eu decido se devo escrever “xixi” ou “urina” nesta frase estejam agora na bexiga da rainha (Deus a abençoe): a água iguala tudo e vai a toda parte. Olhe só para as nuvens. Como uma molécula de água sabe esquecer cada uma das outras moléculas que já encontrou? Como ela sabe que deve tratar meu machucado com sua memória de arnica em vez de fazê-lo com a memória das fezes de Isaac Asimov?” (Ben Goldacre, em Ciência picareta)
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322. “Do mesmo modo, muitas doenças têm o que se chama de uma ‘história natural’: elas pioram e depois melhoram. Como disse Voltaire: ‘A arte da medicina consiste em divertir o paciente enquanto a natureza cura a doença.’ Digamos que você tenha um resfriado. Ele vai melhorar depois de poucos dias, mas no momento você se sente péssimo. É bem natural que, quando os sintomas chegarem a um ponto máximo, você faça coisas para tentar melhorar. Você pode tomar um remédio homeopático. Você poderia sacrificar um bode e pendurar as vísceras dele ao redor do pescoço. Você poderia pressionar seu clínico geral para que lhe receitasse antibióticos. (Listei essas soluções em ordem crescente de ridículo.)” (Ben Goldacre, em Ciência picareta)
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323. “Apesar de todos os perigos da medicina complementar e alternativa, a maior decepção para mim é o modo como ela distorce a compreensão de nosso corpo. Assim como a teoria do Big Bang é muito mais interessante do que a história da criação no Gênesis, a história que a ciência nos conta sobre o mundo natural é muito mais interessante do que qualquer fábula sobre pílulas mágicas preparadas por um terapeuta alternativo. Para recuperar esse equilíbrio, estou oferecendo uma turnê pelo redemoinho de uma das áreas mais bizarras e interessantes da pesquisa médica: o relacionamento entre o corpo e a mente, o papel do significado na cura e, em especial, ‘o efeito placebo'” (Ben Goldacre, em Ciência picareta)
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324. “Houve ocasiões, na história médica, em que os pesquisadores foram mais rudes. O Tuskegee Syphilis Study [Estudo Tuskegee sobre Sífilis], por exemplo, é um dos momentos mais vergonhosos dos Estados Unidos, se é que se pode dizer isso atualmente: 399 homens pobres, afroamericanos, de uma região rural, foram recrutados pelo serviço de saúde pública do país, em 1932, para um estudo de observação para saber 0 que aconteceria se a sífilis fosse, simplesmente, deixada sem tratamento. Surpreendentemente, o estudo continuou até 1972. Em 1949, a penicilina foi apresentada como um tratamento efetivo para a sífilis. Esses homens não receberam nem penicilina, nem Salvarsan, e nem mesmo um pedido de desculpas até que Bill Clinton o fez em 1997” (Ben Goldacre, em Ciência picareta)
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325. “(…) um estudo recente a respeito da dor causada por choques elétricos mostrou que um tratamento analgésico era mais forte quando se dizia aos participantes que ele custava 2,50 dólares do que quando se dizia que custava 10 centavos. (E um estudo atualmente no prelo mostra que as pessoas têm mais probabilidade de seguir conselhos pelos quais pagaram)” (Ben Goldacre, em Ciência picareta)
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326. “Cerca de um século atrás, essas questões éticas foram cuidadosamente documentadas por um índio canadense chamado Quesalid. Cético, ele achava que o xamanismo era besteira e que ele só funcionava por meio da crença e entrou no jogo para investigar essa ideia. Ele encontrou um xamã que se dispôs a ensiná-lo e aprendeu todos os truques, inclusive a atuação clássica em que o curador oculta um tufo de algodão no canto da boca e, então, sugando o ar e ofegando, no auge do ritual de cura, expele o algodão coberto de sangue, tendo mordido discretamente o lábio no ponto certo, e o apresenta solenemente aos espectadores como um espécime patológico extraído do corpo do paciente. Quesalid tinha provas do engodo — ele conhecia o truque — e estava decidido a expor aqueles que o realizavam, mas, como parte de seu treinamento, ele tinha de fazer algum trabalho clínico e foi convocado por uma família ‘que sonhara que ele seria seu salvador’, para ver um paciente que sofria. Ele fez o truque com o tufo de algodão e ficou surpreso, atônito e humilhado ao descobrir que seu paciente melhorou” (Ben Goldacre, em Ciência picareta)
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326. “O filósofo e professor Harry Frankfurt, da Universidade de Princeton, discute essa questão detalhadamente num ensaio clássico de 1986, On Bullshit [Sobre falar merda]. Em seu argumento, ‘falar merda’ é uma forma de falsidade distinta da mentira: o mentiroso sabe qual é a verdade e se importa com ela, mas decide enganar deliberadamente; quem fala a verdade conhece a verdade e tenta exprimi-la; quem fala merda, por outro lado, não se importa com a verdade e simplesmente tenta impressionar” (Ben Goldacre, em Ciência picareta)
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327. “Meu objetivo aqui não é sugerir, de modo algum, que os antioxidantes sejam inteiramente irrelevantes para a saúde. Se eu fosse fazer um slogan para uma camiseta de divulgação deste livro, ele seria: ‘Acho que você vai descobrir que é um pouco mais complicado do que isso.’ Pretendo, como se diz, ‘problematizar’ a visão dominante dos nutricionistas quanto aos antioxidantes, que atualmente está apenas 20 anos atrás das evidências de pesquisa” (Ben Goldacre, em Ciência picareta)
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328. “O motivo para essa enorme disparidade na expectativa de vida — a diferença entre uma aposentadoria longa e rica e uma muito complicada, na verdade — não é que as pessoas em Hampstead têm o cuidado de comer um punhado de frutinhas e de castanhas-do-pará todos os dias, garantindo assim que não tenham deficiência de selênio, como aconselham os nutricionistas. Isso é uma fantasia e, em alguns aspectos, é uma das características mais destrutivas do projeto dos nutricionistas muito bem exemplificado por McKeith: essa é uma distração das causas reais de uma saúde ruim, mas também — interrompa-me se eu estiver indo longe demais —, de certa forma, um manifesto do individualismo direitista. Você é o que você come, e as pessoas morrem cedo porque merecem. Elas escolhem a morte, por meio da ignorância e da preguiça, mas você escolhe a vida — peixe fresco e azeite de oliva —, e é por isso que você é saudável. Você vai chegar aos 80 anos. Você merece isso. Eles, não. De volta ao mundo real, intervenções genuínas de saúde pública para lidar com os fatores sociais e de estilo de vida causadores de doenças são muito menos lucrativas e muito menos espetaculares do que qualquer coisa com que uma Gillian McKeith — ou, mais importante, um editor de TV — possa sonhar em se envolver. Qual série do horário nobre da TV investiga os desertos alimentares criados pelas gigantescas cadeias de supermercados, as mesmas empresas com as quais esses famosos nutricionistas, com tanta frequência, têm contratos comerciais lucrativos? Quem põe na TV a questão da desigualdade social como promotora da desigualdade de saúde? Onde está o interesse humano em proibir a promoção de alimentos ruins, em facilitar o acesso a opções mais saudáveis por meio de impostos ou em manter um sistema claro de rotulagem? Onde está o espetáculo dos ‘ambientes propícios’, que promovem o exercício naturalmente, ou do planejamento urbano que prioriza ciclistas, pedestres e transportes públicos sobre os carros? Ou a redução da sempre crescente desigualdade entre o salário dos altos executivos e dos funcionários da fábrica? Quando você ouviu falar sobre ideias elegantes como ‘ônibus escolares andantes’? Ou as histórias sobre os benefícios dessas ideias foram retiradas da primeira página dos jornais pelas notícias urgentes sobre a última moda em alimentação? Não espero que a dra. Gillian Mckeith, nem ninguém que apareça na mídia, aborde uma única dessas questões, e você também não espera, pois, se formos honestos, sabemos que esses programas só falam em parte sobre alimentação, sendo muito mais sobre voyeurismo indecente e lascivo, lágrimas, números e variedades” (Ben Goldacre, em Ciência picareta)
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329. “(…) como notou George Orwell, a verdadeira genialidade da publicidade é vender a solução e o problema. As empresas farmacêuticas têm trabalhado muito em seus anúncios para o consumidor direto e em seu lobby para vender a ‘hipótese da serotonina’ contra a depressão, mesmo que as evidências científicas para essa teoria sejam mais tênues a cada ano. Por sua vez, a indústria de suplementos alimentares promove, para seu próprio mercado, deficiências alimentares como causa para o desânimo (não tenho uma cura milagrosa a oferecer e, repetindo-me, creio que as causas sociais desses problemas são possivelmente mais interessantes e ainda mais passíveis de intervenção)” (Ben Goldacre, em Ciência picareta)
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330. “Como não podem encontrar novos tratamentos para as doenças que já temos, as empresas de pílulas inventam novas doenças para os tratamentos que eles já têm. As principais invenções recentes incluem transtorno de ansiedade social (um novo uso para as drogas ISRS [Inibidores seletivos de recaptação de serotonina]), disfunção sexual feminina (um novo uso para o Viagra), síndrome da alimentação noturna (ISRS, mais uma vez) e assim por diante; esses são problemas, em um sentido real, mas não necessariamente resolvidos por pílulas nem adequadamente diagnosticados em termos biomédicos reducionistas. Na verdade, tratar inteligência, perda de libido, timidez e fadiga como problemas curáveis por pílulas médicas pode ser considerado grosseiro, explorador e francamente incapacitante” (Ben Goldacre, em Ciência picareta)
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331. “As revistas contam histórias sobre casais com problemas de relacionamento não compreendidos pelo clínico geral (porque esse é o primeiro parágrafo de qualquer história médica que aparece na mídia). Depois, os casais consultaram um especialista, e ele também não os ajudou. Mas, então, eles foram a uma clínica particular. Fizeram exames de sangue, perfis hormonais, estudos esotéricos de mapeamento do fluxo sanguíneo no clitóris e compreenderam: a solução estava em uma pílula, mas essa é só metade da história. Era um problema mecânico. Raramente mencionam-se outros fatores — que a mulher estava cansada pelo excesso de trabalho ou que o homem estava exausto por ser pai de um bebê e que tinha dificuldade em aceitar o fato de que sua esposa era agora a mãe de seus filhos, e não mais a garota com quem namorou no chão do dormitório estudantil ao som de ‘Don’t You Want Me Baby?’, da banda Human League, em 1983 — porque não queremos falar sobre essas questões e porque não queremos falar sobre desigualdade social, desintegração das comunidades locais, ruptura da família, impacto da incerteza de emprego, mudança de expectativas e de ideias de individualismo ou qualquer outro fator complexo e difícil que possa atuar sobre o aparente aumento de comportamentos antissociais nas escolas” (Ben Goldacre, em Ciência picareta)
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332. “Esse é o principal problema que a mídia tem quando precisa cobrir uma pesquisa médica acadêmica atual: não é possível encaixar essas pequenas melhorias — que representam uma importante contribuição para a saúde — no modelo anterior de ‘cura milagrosa e medos ocultos’. Vou ainda mais longe e afirmo que a própria ciência é pouco adequada como matéria para um noticiário: por sua própria natureza, é um tema para a seção de assuntos gerais porque, em geral, não avança por meio de descobertas revolucionárias, súbitas e marcantes. Ela progride através de temas e de teorias que emergem gradualmente, apoiados em uma base de evidências vindas de inúmeras disciplinas em diversos níveis explicativos. No entanto, a mídia continua obcecada por ‘novas descobertas’. É bastante compreensível que os jornais achem que seu trabalho é escrever sobre novos assuntos, mas se um resultado experimental é uma notícia genuína, isso ocorre, muitas vezes, pelas mesmas razões que indicam que ele provavelmente está errado: ele deve ser novo e inesperado e deve mudar o que se pensava anteriormente, o que quer dizer que deve conter informações isoladas que contradizem uma grande quantidade de evidências experimentais já existentes. Muitos trabalhos bons, grande parte realizada por um pesquisador grego chamado John Ioannidis, demonstraram como e por que muitas pesquisas novas com resultados inesperados se mostram, ao fim, falsas. É uma questão claramente importante na aplicação da pesquisa científica ao trabalho cotidiano, por exemplo, na medicina, e suspeito que seja algo que a maioria das pessoas entenda intuitivamente; seria imprudente arriscar sua vida por causa de um único estudo com dados que caminham em direção contrária aos outros” (Ben Goldacre, em Ciência picareta)
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333. “Quando raciocinamos informalmente — você pode usar a palavra intuição, se preferir —, usamos regras práticas que simplificam os problemas em prol da eficiência. Muitos desses atalhos foram bem caracterizados em um campo chamado heurística e são modos eficientes de investigar em muitas circunstâncias. Essa conveniência tem um custo — crenças falsas — porque existem vulnerabilidades sistemáticas nessas estratégias de verificação da verdade, que podem ser exploradas. Isso não é diferente do modo como as pinturas podem explorar atalhos em nosso sistema perceptivo: quando os objetos estão mais distantes, eles parecem ser menores, e a ‘perspectiva’ pode usar esse truque para nos fazer ver três dimensões onde só existem duas, aproveitando a estratégia de nosso aparelho de verificação de profundidade. Quando nosso sistema cognitivo — aparelho que usamos para a verificação da verdade — é enganado, chegamos a conclusões errôneas sobre coisas abstratas. Podemos identificar equivocadamente flutuações normais como padrões significativos, por exemplo, ou enxergar causalidade onde, na verdade, ela não existe” (Ben Goldacre, em Ciência picareta)
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334. “Como seres humanos, temos uma capacidade inata para extrair informações do nada. Vemos formas nas nuvens e um homem na Lua, os jogadores estão convencidos de que têm ‘temporadas de sorte’, ouvimos mensagens ocultas sobre Satã em uma gravação de heavy metal tocada de trás para a frente. Nossa capacidade para enxergar padrões é o que nos permite encontrar sentido no mundo, mas, às vezes, por ansiedade, somos excessivamente sensíveis e enxergamos padrões onde eles não existem” (Ben Goldacre, em Ciência picareta)
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335. “O ‘reforço da comunidade’ transforma uma afirmação em uma forte crença por meio da repetição. O processo independe de a afirmação ter sido pesquisada adequadamente ou sustentada por dados empíricos significativos o bastante para garantir a crença de pessoas razoáveis. O reforço comunitário explica, em grande medida, como as crenças religiosas podem ser passadas de uma geração para outra. Ele também explica como depoimentos de terapeutas, psicólogos, celebridades, teólogos, políticos, apresentadores de talk-shows e assim por diante podem suplantar e ser mais poderosos do que qualquer evidência científica” (Ben Goldacre, em Ciência picareta)
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336. “Temos uma opinião muito elevada sobre nós mesmos, o que é bom. A grande maioria do público pensa que é mais justa, tem menos preconceitos, é mais inteligente e dirige melhor do que o ser humano médio quando, é claro, apenas metade de nós pode ser melhor do que a pessoa mediana. Quase todos temos algo chamado ‘viés de atribuição’: acreditamos que nossos sucessos se devem às nossas capacidades internas e que nossos fracassos se devem a fatores externos; porém, pensamos que os sucessos dos outros se devem à sorte e que seus fracassos são causados por suas próprias falhas. Não podemos todos estar certos” (Ben Goldacre, em Ciência picareta)
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337. “Pessoas incompetentes exibem uma dupla dificuldade: elas não só são incompetentes, como podem ter dificuldades demais para perceber a própria incompetência porque as habilidades necessárias para fazer uma avaliação correta são as mesmas que usamos para reconhecer uma avaliação correta” (Ben Goldacre, em Ciência picareta)
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338. “As pessoas com desempenho especialmente fraco em relação a seus pares não percebiam sua própria incompetência, porém, mais do que isso, eram menos capazes de reconhecer a competência nos outros, porque isso também depende de ‘metacognição’ ou conhecimento sobre a habilidade” (Ben Goldacre, em Ciência picareta)
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339. “Quando seus pais eram jovens, eles podiam consertar o próprio carro e entender a ciência por trás da maior parte da tecnologia cotidiana, mas não é mais assim (…) Os aparelhos do dia a dia passaram a ter uma complexidade de ‘caixa preta’ que pode parecer sinistra além de intelectualmente debilitante” (Ben Goldacre, em Ciência picareta)
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340. “A igreja está cheia. A assembleia de fiéis devotados ouve a prédica. O reverendo explica como devem ser os preparativos para o feriado santo do Natal. Quando tem a impressão de que a assembleia não está prestando atenção, ele chuta a plataforma que substitui o púlpito com a bota de montaria. // Porque, para a assembleia, o importante não é prestar atenção. O que importa é se vestir bem para o domingo, importa não esquecer em casa o livro de salmos em alemão. Importa arrear a carroça verde (ou vermelho-escura) e importa que o pelo dos cavalos esteja brilhante. Escová-los para que fiquem bem limpos, isso importa. Para as meninas importa a saia passada e a sombrinha nova, ainda que elas estejam descalças. O culto a Deus é como a parada militar em tempos de paz: todos são a um tempo espectadores e participantes” (Sándor Lénard, em O vale do fim do mundo)
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341. “Parece incompreensível que justamente o europeu, que conheceu as profundezas dos horrores, conheceu o medo da morte e a fome, golpeado pelas pragas da civilização, quando as bênçãos da cultura o abandonaram havia muito tempo, continue querendo viver entre estradas sinalizadas e proibições. Anseia pelo escritório, pela fabrica. Deseja se queixar do superior malvado, do subordinado estúpido, deseja ir ao cinema para que possa ver as paisagens onde não teria coragem e seria incapaz de viver. // Não, não é incompreensível. O europeu e tão desamparado que não pode escolher a liberdade infinita da vida simples, elementar. A fraqueza do indivíduo cria a horda; também nessas horas, políticos educados falam de massa. Os fracos anseiam pela camisa colorida, pelas águias costuradas nos uniformes, pelo barrete negro, pela bota, porque sem eles se sentem ainda mais fracos” (Sándor Lénard, em O vale do fim do mundo)
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342. “Apenas a máscara do palco antigo era sempre igual, somente no teatro existem malvados incorrigíveis e heróis sem máculas. Há tempos o espectrógrafo comprovou que a natureza não conhece substâncias puras, em tudo há de tudo. Temos de aceitar o fato de que em todos também existe tudo. Somente o enxofre e o fogo do inferno atemorizam o ladrão de galinhas principiante, e temos de prome ter as graças eternas do paraíso se quisermos oferecer um analgésico para uma avó que morre de câncer” (Sándor Lénard, em O vale do fim do mundo)
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343. “As crianças todas trabalham. Viver e trabalhar significam o mesmo que viver e respirar. As de três anos carregam lenha para a cozinha. A criança mais velha, especialmente se for menina, é a substituta severa e generosa da mãe. As de dezesseis anos podem se casar, uma vez que até então passaram a vida lavando fraldas, fervendo mingau de leite, tanto mais porque dos dezesseis aos sessenta elas não aprendem nenhuma palavra ou conceito novo” (Sándor Lénard, em O vale do fim do mundo)
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344. “A sabedoria de Aldomiro não tem nenhuma pretensão de originalidade. Lao-Tsé anotou há muito tempo: ‘O sábio se ocupa de não fazer nada’. A concepção do curso de pensamento do português: ‘Sombra, água fresca, sapatos folgados’; a do italiano é o ‘dolcefar niente’. Mas da doce inação ninguém se aproximou tanto quanto os filhos felizes deste país. Aqui não há inverno para que formigas e cigarras sejam julgadas. O caboclo mora no interior do país, os índios e espanhóis são capuchinhos, os descendentes dos negros e caçadores portugueses de esmeraldas vivem em cabanas. Não têm móveis. O filho menor dorme na rede, os demais, em esteiras no chão. Em volta da cabana há quatro ou cinco pés de café. O café nunca falta, basta colher a fruta no pé, secá-la, descascá-la, torrá-la, e moer as sementes. Lá cresce também a cana-de-açúcar. Seu sumo cozido é o melhor adoçante de café do mundo, grosso, escuro, doce e nutritivo. Por assim dizer, a batata-doce cresce em todo lugar… basta enfiar dois ou três talos na terra, e ela corre por si. Os gomos imensos crescem na superfície e nem é preciso desenterrá-los. Basta abaixar-se por eles. Não custa muito semear duas vezes por ano meia saca de milho e um pote de feijão e esperar que amadureçam. O pé de banana e o pé de mamão crescem em meio às ervas daninhas e arbustos e dão frutos durante o ano todo. A laranja semeia quem cospe a semente em um canto adequado, a groselha semeiam os pássaros pequenos que trazem o grão de outro lugar. As galinhas se multiplicam por si, e encontram besouros e minhocas suficientes para que os ovos não faltem. Os porquinhos também conhecem os caminhos em meio aos arbustos, no mato, onde encontram raízes e gomos apropriados para eles. As colmeias juntam disciplinadamente o mel, na primavera orquídeas e lírios abundam… para que – não pergunto com ironia, mas com muita sinceridade –, para que as letras, as aulas, a preocupação com o futuro, que aumenta a pressão e entope as artérias? Se o infeliz europeu não quer viver sem móveis, roupas e livros, o problema é dele. // Quem teria coragem de afirmar que Diógenes era louco? Hoje em dia só segue o exemplo dele o caboclo que, sentado na margem, contempla o riacho e adia o trabalho até que a água corra montanha acima. E se Rockefeller – o Alexandre, o Grande, da nossa época –, ele próprio viesse e de novo perguntasse: “O que você deseja?” – o sábio também hoje diria apenas ‘afaste-se um pouco para não cobrir o sol’, ou, porque vivemos em uma região subtropical, ‘chegue mais perto, jogue um pouco de sombra sobre mim’. Essa sabedoria não se opõe à vida, ou melhor, o português gosta tanto da vida que confessa: ‘se a morte é repouso eterno, prefiro viver cansado’. O homem que descansa na soleira tem clareza disso tudo. ‘Se o trabalho fosse bom, os ricos o guardariam para eles’, cita, e apalpa os bolsos para ver se ainda restam folhas de milho” (Sándor Lénard, em O vale do fim do mundo)
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345. “A situação é mais compreensível se levarmos em conta que na América do Sul toda pirâmide começa a ser construída pela ponta. Quando em outro lugar se constrói uma cidade, começa-se pelas ferrovias e estradas. Depois vêm os encanamentos, a luz, os esgotos… A seguir as casas, o hospital e os edifícios públicos… por fim, talvez se pense na igreja. A construção da nova capital, Brasília, começou pela estrutura da catedral, e por enquanto não há ferrovia, e também de carro é difícil chegar lá. Em outros lugares fabricam-se bicicletas, depois motocicletas, locomotivas… quem sabe um dia reatores nucleares. Aqui existe reator nuclear, mas não há fábrica de bicicletas. Assim, existe a Academia dos Imortais, todos os quarenta homens ilustres têm um fraque verde bordado em ouro e um sabre enfeitado, mas a escola primária tem problemas, porque não há professores. Não há professores em número suficiente, porque não existe escola de pedagogia, e não se podem criar escolas de pedagogia porque não há professores. E nem haverá porque os impostos não são para isso (…) Tudo é claro e lógico” (Sándor Lénard, em O vale do fim do mundo)
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346. “As memórias aderem aos objetos” (Sándor Lénard, em O vale do fim do mundo)
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347. “A ambição morre tão tarde quanto a esperança” (Sándor Lénard, em O vale do fim do mundo)
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348. “’O Brasil tem mais leis que qualquer outro país’, explicou uma vez um amigo nativo, ‘mas falta apenas uma. A lei que ordenaria que as outras precisam ser respeitadas’” (Sándor Lénard, em O vale do fim do mundo)
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349. “Não é fácil descobrir o que inspira ou não confiança. Um paciente certa vez entrou em minha sala, não sei mais porquê. Avistou a minha pobre biblioteca de três prateleiras. ‘O médico novo não vale grande coisa”, noticiou no dia seguinte para todos que encontrava. ‘Estive na sala dele, e sabe o que tem lá? Livros! Ele tem livros! Ele ainda estuda!’ A minha prática melhorou quando por algum tempo eu também fiquei de cama por causa do meu coração” (Sándor Lénard, em O vale do fim do mundo)
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350. “É verdade que a Sra. Plinz – ao contrário dos outros – não é supersticiosa. Acredita somente nas bruxas que existem de verdade” (Sándor Lénard, em O vale do fim do mundo)
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351. É inútil dar as costas para o passado. Quando me deito sem fazer nada e olho para o teto, o tempo passado volta, e pergunta: ‘você ainda sabe?’” (Sándor Lénard, em O vale do fim do mundo)
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352. “A nostalgia não tem uma literatura tão vasta quanto o amor infeliz, mas esses sentimentos são parentes A nostalgia não tem nada a ver com o país, nem com a nação, muito menos com a pátria. A nostalgia dói. Não tem objeto. Talvez as plantas soubessem contar com mais exatidão o que ela é: em terra desconhecida, em clima estranho, elas murcham, enlouquecem. Aqui a tulipa não dá flor, o arbusto do lilás não cresce, ele é baixo, não vive nem morre, a groselha não dá frutos. Elas sabem o que é nostalgia” (Sándor Lénard, em O vale do fim do mundo)
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353. “Porém aprenderam que a vida passa, que os mortos são seguidos por novos mortais que desejam comer, beber, descansar…” (Sándor Lénard, em O vale do fim do mundo)
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354. “Somente os sonhos voam até os planetas. Os sonhadores ficam nos campos de aipim e continuam a tirar ervas daninhas” (Sándor Lénard, em O vale do fim do mundo)
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355. “E ainda que no campo científico não tenham ido longe, elas conhecem tudo. Conhecem seus limites. Sabem que na cidade as casas são altas e o pavimento é duro. Quem cai na cidade se machuca. Lá nada brota. De lá não vem nada de bom. Todos são escravos miseráveis. Só vive em segurança quem vive na própria terra. As pessoas precisam de cercas” (Sándor Lénard, em O vale do fim do mundo)
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356. “Meu senhor, minha senhora, desculpe tocar no assunto, mas você vai morrer. Não se ofenda, vamos todos: eu, a Dona Eulália do 51, a rainha Silvia da Suécia e a voz da chamada a cobrar” (Antonio Prata, em Meio intelectual meio de esquerda – crônica “Ornitorrinco”)
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357. “Veja só os gregos, tão sabidos: todos mortos. Shakespeare, morto! Einstein, morto! A Marylin Monroe, Noel Rosa e o cacique Tiribiçá, mortos! ‘Ah, mas eles sobreviveram em nossa memória!’ Grande coisa. Lembranças não comem picanha, não fazem sexo e, mesmo vivendo na cabeça de milhões de pessoas, nunca sentiram o prazer de um cafuné” (Antonio Prata, em Meio intelectual meio de esquerda – crônica “Ornitorrinco”)
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358. “Para um escritor, poucas observações podem ser mais trágicas. Posso me acabar de ler Shakespeare, Dostoiévski, e Goethe, mas os verdadeiros Macbeths, Ivans Karamázovs e Faustos estão entre as máquinas de café e os scanners, tiram fotinhos na portaria e alimentam as catracas com seus crachás; nos vinte andares acima do Subsolo 1, sonhos medram ou murcham, homens negociam, traem, fofocas espalham-se, talvez alguém entregue a própria cabeça em nome de um valor; a glória e o fiasco espocam, diariamente, entre divisórias de PVC” (Antonio Prata, em Meio intelectual meio de esquerda – crônica “Subsolo 1”)
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359. “Como herança da escravidão, nós nunca entendemos que a lei é um código comum, destinado a organizar minimamente o fuzuê, de forma que possamos caminhar com alguma segurança em direção à felicidade. Vemos a lei como a demonstração de poder de uma pessoa sobre outra” (Antonio Prata, em Meio intelectual meio de esquerda – crônica “Senta, ô careca!”)
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360. “Recorrer a essas lembranças é para mim como entrar no sótão da minha memória culta, com um certo sorriso irônico no rosto, o meu, suponho. Aliás, quando às vezes tento compor, em frente ao espelho do banheiro, o sorriso irônico que imagino em mim, não consigo. Só vejo um estranho manequim cheio de sorrisos interrompidos ou excessivos, que não consegue compor o sorriso sutil, como uma espuma tênue, que me faria feliz” (Manuel Vázquez Montalbán, em Quarteto)
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361. “Eu estava deslumbrado com a proposta de mudar a vida, como pedia Rimbaud, e de mudar a História, como pedia Marx, entre outros, e afinal minha viagem intelectual e culta descobria o motor incessante de crueldade que legitima tanto uma como a outra. O melhor é se conformar com a aparência da realidade e escolher suas facetas mais prazerosas e bonitas. Já é suficiente o nosso inferno íntimo, essas areias movediças internas em que os remorsos e as inseguranças engolem nossa própria entidade. Se fosse possível extirpar a capacidade de olhar para dentro de si mesmo!” (Manuel Vázquez Montalbán, em Quarteto)
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362. “Eu não era movido por um impulso de solidariedade, mas pela mesma mecânica ritual que leva você aos batizados e enterros, e mesmo a alguns velórios: a preocupação de que sua ausência seja muito mais notada que sua presença” (Manuel Vázquez Montalbán, em Quarteto)
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363. “O que os uniu foi a falta de princípios e de objetivos e o fato de conhecer, graças à cultura, quase todos os princípios e todos os objetivos possíveis” (Manuel Vázquez Montalbán, em Quarteto)
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364. “Para eles, seu mundo social era uma paisagem predestinada da qual podiam esperar um cheque de vez em quando, o apoio econômico inicial para a loja de antiguidades e algum dia uma herançaa suficiente para poderem continuar sendo o que eram até o final dos seus dias, quer dizer, para continuar sendo importantemente nada, consideravelmente nada” (Manuel Vázquez Montalbán, em Quarteto)
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365. “Tudo em ordem. Tudo em desordem. No espelho vejo o meu velho irmão, esse que faz as contas do tempo que está comigo, esse outro que envelhece e me olha cativo, que precisa do meu olhar para reconhecer-se vivo. Esse outro que me pede nostalgia e me mente com vontade de voltar à infância, como uma fuga para trás, impossível a fuga para a frente, para além do espelho. E esse outro sempre me propõe o medo de amar e de envelhecer até que o tranquilizo quando o beijo, quando beijo meus lábios e do contato brota a flor de hálito fantasmal” (Manuel Vázquez Montalbán, em Quarteto)
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366. “Intimamente, Moshe já decidira tornar-se vegetariano, ou até mesmo naturista, mas postergava a concretização dessa decisão porque não seria fácil ser naturista na comunidade de jovens do kibutz. Mesmo sem ser vegetariano ele tinha de se esforçar dia e noite para não ser diferente dos outros. Se conter. Fingir. Ele pensou na crueldade que havia no ato de comer carne, e na sina dessas galinhas, condenadas a passar toda a sua vida em gaiolas gradeadas com arame, espremidas e apertadas uma na outra para porem seus ovos, duas a duas, naqueles compactos compartimentos, sem poderem se mover em seu lugar nem mesmo um passo, por todos os dias de suas vidas. Um dia ainda haverá no mundo uma geração, pensou Moshe, que nos chamará a todos de assassinos e não compreenderá como pudemos comer a carne de criaturas como nós, de quem confiscamos o contato com a terra e o cheiro do verde, para fazê-las brotar em chocadeiras automáticas, para criá-las em gaiolas apertadas, para alimentá-las e abarrotá-las até enjoar, para roubar-lhes todos os ovos antes de elas os chocarem, e por fim para cortar-lhes a garganta, depená-las, arrancar-lhes os membros e os órgãos e nos empanturrar e salivar e lamber a gordura” (Amós Oz, em Entre amigos)
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367. “Quando Ioav ergueu os olhos viu um floco de nuvens baixas bem em cima dele e disse a si mesmo que tudo que consideramos importante na verdade não tem importância e no que é realmente importante não temos tempo bastante para pensar. A vida inteira passa e você quase não pensa nas coisas simples e grandiosas, solidão, saudade, paixão e morte” (Amós Oz, em Entre amigos)
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368. “Ele não tinha no quarto nem um bule seu nem xícaras suas, por questão de princípios: a prática de juntar coisas é a maldição da sociedade humana. É da natureza das coisas materiais se apoderar lentamente da alma e escravizá-la. Martin tampouco acreditava na instituição familiar, porque a vida do casal em si mesma cria uma barreira supérflua entre a célula familiar e a sociedade. Achava que a comunidade como um todo tinha de criar e educar todas as crianças, e não só seus pais biológicos. Tudo aqui pertence a todos nós, todos nós pertencemos uns aos outros e as crianças têm de ser crias de todos nós” (Amós Oz, em Entre amigos)
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369. “Ele dizia: ‘O homem é basicamente bom e gentil e honesto e é só o ambiente que nos corrompe’. Osnat dizia: ‘Mas o que é o ambiente? No final das contas, mais homens’” (Amós Oz, em Entre amigos)
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370. “Osnat ficava calada. Pensava consigo mesma que a crueldade é mais disseminada no mundo do que a compaixão, e às vezes a própria compaixão é uma forma de crueldade” (Amós Oz, em Entre amigos)
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371. “Sobretudo, desde que sua vida começara lentamente a declinar, desde que seu medo de artista de não atingir o fim – esse receio de o relógio querer parar antes de ele ter cumprido sua parte, antes de ter-se dado por inteiro – não devia mais ser considerado mera extravagância, sua existência exterior vinha sendo limitada quase que exclusivamente à bela cidade que elegera como sua e à casa rústica que construíra nas montanhas e onde passava os verões chuvosos” (Thomas Mann, em Morte em Veneza)
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372. “Tencionava adiantar a obra a que dedicava sua vida até determinado ponto, antes de transferir-se para o campo, e a ideia de uma vadiagem pelo mundo, que o afastaria de seu trabalho durante meses, parecia por demais leviana e contrária aos planos para ser seriamente levada em conta. Ele sabia perfeitamente por que a tentação surgira tão inopinadamente. Era desejo de fuga, que ele confessava a si mesmo, essa nostalgia de distância e novidade, esse desejo de libertação, desobrigação e esquecimento – impulso de se afastar da obra, do cenário cotidiano de obrigação rígida, fria e apaixonada. Amava, na verdade, seu trabalho e quase já amava a luta enervante, a cada dia renovada, entre sua vontade tenaz e orgulhosa, tantas vezes posta à prova, e esse cansaço crescente, de quem ninguém devia suspeitar e que nenhum indício de fraqueza ou negligência no produto acabado deveria trair” (Thomas Mann, em Morte em Veneza)
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373. “Para que qualquer produto intelectual de peso possa surtir de imediato um efeito amplo e profundo, é preciso que haja uma afinidade secreta, uma coincidência entre o destino pessoal de seu autor e o destino anônimo de sua geração. As pessoas não sabem por que elas tornam famosa uma obra de arte. Sem o menor conhecimento de causa, julgam descobrir centenas de méritos para justificar tamanho apreço; mas o verdadeiro fundamento de seu aplauso é algo imponderável, é simpatia” (Thomas Mann, em Morte em Veneza)
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374. “Era o poeta de todos aqueles que trabalham à beira da exaustão, dos que carregam um fardo superior a suas forças e, mesmo esgotados, se mantêm ainda de pé, de todos esses moralistas que têm por máxima o dever de produzir e que, de porte franzino e dispondo de meios precários, à custa de prodígios de vontade e hábil organização, conseguem obter, ao menos por algum tempo, efeitos de grandeza. Há muitos deles: são os heróis dessa época. E todos eles se reconheciam na sua obra; nela se encontravam justificados, poeticamente enaltecidos e, cheios de gratidão, difundiam seu nome” (Thomas Mann, em Morte em Veneza)
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375. “Mesmo sob o prisma pessoal, a arte é uma vida elevada. Ela traz uma felicidade mais profundas um desgaste mais acelerado. Grava no rosto de seu servidor os traços de aventuras imaginárias e espirituais, e com o tempo, mesmo no caso de uma vida exterior de uma placidez monástica, provoca uma perversão, um refinamento, um cansaço e uma excitação dos nervos, que mesmo uma vida cheia de paixões e prazeres desvairados dificilmente poderia produzir” (Thomas Mann, em Morte em Veneza)
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376. “Não há nada mais estranho e melindroso do que a relação entre pessoas que só se conhecem de vista – que se encontram e se observam diariamente, ou mesmo a toda hora, sem um cumprimento, sem uma palavra, forçadas a manter uma aparente indiferença de desconhecidos, por imposição dos costumes, ou por capricho pessoal. Há entre elas inquietação e curiosidade exacerbada, a histeria de uma necessidade insatisfeita, artificialmente reprimida, de travar conhecimento e comunicar-se, e também, sobretudo, uma espécie de respeito carregado de tensão. Pois o ser humanos ama e respeita seu semelhante enquanto não tem condições de julgá-lo, e o desejo é produto de um conhecimento imperfeito” (Thomas Mann, em Morte em Veneza)
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377. “Pois a paixão, tal como o crime, não se adapta à ordem estabelecida, ao bem-estar da marcha do cotidiano, e qualquer desarranjo da estrutura burguesa, qualquer perturbação e tribulação do mundo têm de lhe ser bem-vindos, pois ela pode alimentar a vaga esperança de encontrar aí algum proveito” (Thomas Mann, em Morte em Veneza)
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378. “Vês agora que nós, poetas, não podemos ser nem sábios nem dignos? Que fatalmente incorremos em erro, que fatalmente permanecemos devassos e aventureiros do sentimento? A maestria de nosso estilo é mentira e estupidez; nossa fama e respeitabilidade, uma farsa; a confiança depositada em nós pela multidão, altamente ridícula; a educação do povo e da juventude pela arte, um empreendimento temerário que deveria ser proibido. Pois, como pode servir de educador quem traz em si um pendor inato e incorrigível para o abismo?” (Thomas Mann, em Morte em Veneza)
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379. “Um dia me expulsaram, junto com um companheiro, da sala de aula, por ficar conversando. Saímos da classe e nos sentamos no chão, perto da porta, com as costas apoiadas na parede e as pernas esticadas, como um par de cúmplices. Disse que havia, na sua casa, uma granada de mão da guerra e que ele queria me mostrar, mas que seu pai o tinha proibido de levá-la para a rua. Indiquei que podia ir vê-la. Então, observando criticamente minhas botas, feridas já de morte, falou: ‘É que minha casa é de muito luxo’. Com frequência, o inimigo de classe é seu companheiro de carteira. (Juan José Millás, em O mundo)
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380. Os grandes acontecimentos afetam nossa vida só relativamente, com frequência uma frase pronunciada en passant ou um evento fortuito nos influenciam muito mais que a chegada do homem à Lua ou a da estrutura do DNA. Quem pronunciou a frase decisiva no caso de Tessel foi a mãe dela, numa tarde tórrida em que elas tinham saído para comprar um par de sapatos na Cidade do Cabo: “Olha, a sua cara”, disse a mãe, e Tessel entendeu logo a que se referia. À frente delas, caminhava um menino gordo, de mãos dadas com a mãe (…). Foi uma gafe terrível do ponto de vista pedagógico, e o sangue de Tessel congelou nas veias. // Aquele garoto gordo, encontrado por acaso numa rua comercial da Cidade do Cabo, transformou-se em sua única expectativa de futuro. Ela beijaria rapazes gordos, se sentaria ao lado de rapazes gordos, primeiro na escola, depois na universidade, se casaria com um rapaz gordo e daria à luz muitos meninos gordos. Tessel pensou em suicídio. (Tommy Wieringa, em Joe Speedboat)
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381. “Você prefere amar mais e sofrer mais, ou amar menos e sofrer menos? Para mim, esta é a única e verdadeira questão.” (from “A única história” by Julian Barnes)
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382. “Você pode observar – corretamente – que não se trata de uma pergunta de verdade. Porque não temos escolha. Se tivéssemos escolha, então existiria uma pergunta. Mas não temos, então não existe. Quem pode controlar o quanto ama? Se você consegue controlar, é porque não é amor. Eu não sei que nome dar a isso, mas não é amor.” (from “A única história” by Julian Barnes)
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383. “A farmácia vendia curativos para verruga e xampu seco em pequenos frascos, mas não anticoncepcionais;” (from “A única história” by Julian Barnes)
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384. “– Seu marido joga? – Meu marido? O Sr. C.E.? – Ela riu. – Não. O jogo dele é golfe. Eu acho pouco esportivo bater em bola parada. Você não concorda?” (from “A única história” by Julian Barnes)
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385. “Havia coisas demais nessa resposta para eu destrinchar na mesma hora, então só balancei a cabeça e grunhi baixinho.” (from “A única história” by Julian Barnes)
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386. “– Você gostaria de uma carona? Eu tenho um carro. Ela me olhou de viés. – Bem, eu não iria querer uma carona se você não tivesse um carro. Isso seria contraproducente. – Algo no modo como ela disse isso tornou impossível eu me sentir ofendido. – Mas e quanto a sua reputação? – Minha reputação? – respondi. – Acho que não tenho uma reputação. – Puxa vida. Então vamos ter que arranjar uma para você. Todo rapaz devia ter uma reputação.” (from “A única história” by Julian Barnes)
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387. “Nós tendemos a classificar qualquer relacionamento novo que encontramos em uma categoria preexistente. Nós vemos o que é geral ou comum nele; enquanto os participantes vêm – sentem – apenas o que é individual e particular. Nós dizemos: que previsível; eles dizem: que surpresa! Uma das coisas que pensei a nosso respeito – Susan e eu – na época, e agora, de novo, tantos anos depois – foi que muitas vezes não pareciam existir palavras para o nosso relacionamento; pelo menos nenhuma palavra que servisse. Mas talvez esta seja uma ilusão que todos os amantes têm a respeito de si mesmos: que eles fogem a qualquer categoria e descrição.” (from “A única história” by Julian Barnes)
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388. “Uma conversa entre mim e meus pais (leia: minha mãe), uma daquelas conversas inglesas que condensa parágrafos de animosidade em duas frases: – Mas eu tenho dezenove anos. – Exatamente, você só tem dezenove anos.” (from “A única história” by Julian Barnes)
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389. “Enquanto Susan fervia a água na chaleira, eu olhei em volta. A casa era semelhante à nossa, só que tudo parecia um pouco mais elegante; ou melhor, ali as coisas velhas pareciam herdadas, e não compradas de segunda mão. Havia luminárias comuns com cúpulas de pergaminho amarelado. Havia também – não exatamente uma displicência, era mais uma indiferença com o fato de as coisas não estarem arrumadas. Eu vi tacos de golfe numa bolsa no chão do corredor e dois copos ainda não retirados da mesa do almoço, talvez até da noite anterior. Nada deixava de ser retirado na nossa casa. Tudo tinha que ser arrumado, lavado, varrido, esfregado. Caso alguém aparecesse de repente. Mas quem faria isso? O vigário? O guarda local? Alguém querendo dar um telefonema? Um vendedor ambulante? A verdade era que ninguém jamais chegou sem ser convidado e toda aquela arrumação e limpeza eram feitas em motivo do que me parecia ser um profundo atavismo social. Enquanto aqui as pessoas como eu chegavam e o lugar parecia, como minha mãe sem dúvida teria” (from “A única história” by Julian Barnes)
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390. “Enquanto Susan fervia a água na chaleira, eu olhei em volta. A casa era semelhante à nossa, só que tudo parecia um pouco mais elegante; ou melhor, ali as coisas velhas pareciam herdadas, e não compradas de segunda mão. Havia luminárias comuns com cúpulas de pergaminho amarelado. Havia também – não exatamente uma displicência, era mais uma indiferença com o fato de as coisas não estarem arrumadas. Eu vi tacos de golfe numa bolsa no chão do corredor e dois copos ainda não retirados da mesa do almoço, talvez até da noite anterior. Nada deixava de ser retirado na nossa casa. Tudo tinha que ser arrumado, lavado, varrido, esfregado. Caso alguém aparecesse de repente. Mas quem faria isso? O vigário? O guarda local? Alguém querendo dar um telefonema? Um vendedor ambulante? A verdade era que ninguém jamais chegou sem ser convidado e toda aquela arrumação e limpeza eram feitas em motivo do que me parecia ser um profundo atavismo social. Enquanto aqui as pessoas como eu chegavam e o lugar parecia, como minha mãe sem dúvida teria observado, não ver uma vassoura há quinze dias.” (from “A única história” by Julian Barnes)
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391. “Por exemplo, eu me lembro de me deitar na cama uma noite e ficar acordado por causa de uma daquelas ereções enormes que, quando se é jovem, você desatentamente – ou despreocupadamente – imagina que vão durar para o resto da vida. Mas esta foi diferente. Era uma espécie de ereção generalizada, desconectada de uma pessoa, de um sonho ou de uma fantasia. Era apenas pelo fato de eu ser beatificamente jovem. Jovem de cérebro, coração, pênis e alma – e aconteceu de ser o pênis o que melhor exprimiu aquele estado geral.” (from “A única história” by Julian Barnes)
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392. “Mas caso você esteja na dúvida, eu não tenho inveja dos jovens. Nos meus dias de ira e insolência adolescentes, eu costumava perguntar a mim mesmo: para que servem os velhos, a não ser para invejar os jovens? Este me parecia ser o objetivo principal deles antes da extinção.” (from “A única história” by Julian Barnes)
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393. “Eu não me lembro de quando nos beijamos pela primeira vez. Não é esquisito? Eu consigo lembrar 6-2; 7-5; 2-6. Eu consigo me lembrar das orelhas daquele motorista velho nos mínimos detalhes. Mas não consigo me lembrar de quando ou onde nos beijamos pela primeira vez, ou quem tomou a iniciativa, ou se fomos nós dois ao mesmo tempo.” (from “A única história” by Julian Barnes)
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394. “Olha, eu não quis, em momento algum, em nenhum nível, matar meu próprio pai e dormir com minha mãe. É verdade que eu quis dormir com Susan – e fiz isso muitas vezes – e por alguns anos pensei em matar Gordon Macleod, mas isso é outra parte da história. Sem entrar muito nisso, eu penso que o mito de Édipo é precisamente o que ele começou sendo: mais melodrama que psicologia. Em todos os meus anos de vida, eu nunca conheci ninguém a quem ele pudesse se aplicar.” (from “A única história” by Julian Barnes)
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395. “– Não é estranho? – ela diz. – Minha mãe morreu de câncer quando eu tinha dez anos e só penso nela quando estou cortando as unhas dos pés.” (from “A única história” by Julian Barnes)
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396. “prazeres. A bebida altera as pessoas. E não para melhor. Eu concordo. Não” (from “A única história” by Julian Barnes)
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397. “E o Sr. C.E. não era nenhum modelo das virtudes de beber. Enquanto esperava pelo jantar, ele se sentava à mesa cercado pelo que Susan chamava de “seus garrafões”, despejando o líquido na sua caneca de cerveja com a mão cada vez mais trêmula. Na frente dele havia outra caneca, cheia de cebolinhas, que ele mastigava. Então, passado um tempo, arrotava discretamente, cobrindo a boca de uma maneira pseudocavalheiresca. Por causa disso, eu detestei cebolinha a vida inteira. E nunca apreciei muito cerveja.” (from “A única história” by Julian Barnes)
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398. “Você já notou como ele fuma? Ele acende e solta a fumaça como se sua vida dependesse disso, e então, quando o cigarro está no meio, ele o apaga com nojo. E este nojo dura até ele acender o próximo. Cerca de cinco minutos depois.” (from “A única história” by Julian Barnes)
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399. “– Não é estranho? – ela diz. – Minha mãe morreu de câncer quando eu tinha dez anos e só penso nela quando estou cortando as unhas dos pés.” (from “A única história” by Julian Barnes)
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400. “Eu me lembrava, de leituras dos tempos de colégio, que Obstáculos Aumentam a Paixão; mas agora que eu estava sentindo o que antes só havia lido a respeito, a ideia de um Obstáculo não me parecia nem necessária nem desejável. Mas eu era muito jovem emocionalmente, e talvez simplesmente cego aos obstáculos que outros enxergariam com facilidade.” (from “A única história” by Julian Barnes)
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401. “Aprendeu a passar o tempo. Essa é uma das coisas da vida. Nós só estamos procurando um lugar seguro. E quando não encontramos, então temos que aprender a passar o tempo.”” (from “A única história” by Julian Barnes)
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402. “– Sim e não. Sim e não. Mas jamais esqueça, jovem Mestre Paul. Todo mundo tem sua história de amor. Todo mundo. A história pode ter sido um fiasco, pode ter fracassado, pode nunca ter progredido, pode ter sido apenas fruto da imaginação, mas isso não a torna menos real. Às vezes, você vê um casal, e eles parecem totalmente entediados um com o outro, e você não consegue imaginar que eles tenham algo em comum, nem por que continuam vivendo juntos. Mas não é só hábito ou complacência ou convenção ou algo parecido. É porque um dia eles tiveram sua história de amor. Todo mundo tem. É a única história. Eu não respondo. Eu me sinto censurado. Não censurado por Susan. Censurado pela vida.” (from “A única história” by Julian Barnes)
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403. “Não que eu sempre concordasse com ela. Quando falava sobre Joan, ela dizia: “Nós todos estamos procurando um lugar seguro.” Eu refleti sobre essas palavras depois. A conclusão a que cheguei foi a seguinte: talvez sim, mas eu sou jovem, eu “só tenho dezenove anos”, e estou mais interessado em procurar um lugar perigoso.” (from “A única história” by Julian Barnes)
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404. “Após alguns meses, talvez mais, ela anuncia que eu preciso de um fundo para fuga. – Para quê? – Para fugir. Todo mundo devia ter um fundo para fuga. – Assim como todo rapaz devia ter uma reputação. De onde tinha saído essa ideia? De um romance de Nancy Mitford? – Mas eu não quero fugir. Fugir de quem? Dos meus pais? Eu, de certa forma, já os deixei. Mentalmente. De você? Por que eu iria querer fugir de você? Eu quero que você fique na minha vida para sempre. – Isso é muito lindo de sua parte, Paul. Mas não se trata de um fundo específico, sabe? É uma espécie de fundo geral. Porque em algum momento todo mundo quer fugir de sua própria vida. Esta é uma das únicas coisas que os seres humanos têm em comum.” (from “A única história” by Julian Barnes)
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405. “Não era dos punhos de Macleod que eu tinha medo – não em primeiro lugar. Era da raiva dele. Nós não lidávamos com raiva na nossa família. Fazíamos comentários irônicos, réplicas afiadas, apartes sarcásticos; nós usávamos palavras precisas para vedar determinado comportamento, e palavras mais severas para condenar o que já havia ocorrido. Mas para qualquer coisa mais grave do que isso nós fazíamos o que foi imposto à classe média inglesa durante gerações. Nós internalizávamos nossa ira, nossa raiva, nosso desprezo. Determinadas palavras eram sussurradas. Podíamos até escrever algumas dessas palavras em nossos diários, caso tivéssemos um diário. Mas também pensávamos que éramos os únicos a reagir desse modo, e como era um pouco vergonhoso, internalizávamos ainda mais o problema.” (from “A única história” by Julian Barnes)
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406. “A ideia de violência por parte de maridos com diploma de Cambridge me parecia algo incompreensível. É claro, eu nunca tivera motivo para pensar nisso antes. Mas se tivesse, teria provavelmente achado que a violência dos maridos das classes trabalhadoras estava ligada à incapacidade de articulação: eles recorriam aos punhos enquanto os maridos de classe média recorriam às palavras. Ambos os mitos levaram alguns anos para desaparecer, apesar da evidência existente.” (from “A única história” by Julian Barnes)
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407. “Você é um absolutista a favor do amor, e portanto um absolutista contra o casamento. Você pensou muito no assunto, e formulou muitas comparações extravagantes. O casamento é um canil onde a complacência mora e nunca é acorrentada. O casamento é uma caixa de joias que, por alguma misteriosa alquimia ao avesso, transforma ouro, prata e diamantes em metal, massa e quartzo. O casamento é uma casa de barcos sem uso contendo uma velha canoa para duas pessoas, que não pode mais ir na água porque está toda furada no fundo e faltando um remo. O casamento é… ah, temos dezenas de comparações para usar.” (from “A única história” by Julian Barnes)
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408. “O que eu não gostava e desconfiava a respeito da idade adulta? Bem, para ser sucinto: o sentido de privilégio, o sentido de superioridade, a suposição de saber mais, se não tudo, a enorme banalidade das opiniões adultas, o modo como as mulheres tiravam da bolsa o estojo de pó compacto e passavam no nariz, o modo como os homens se sentavam nas poltronas, com as pernas abertas e as partes íntimas bem delineadas contra a calça, o modo como eles falavam de jardins e jardinagem, os óculos que usavam e a exibição que faziam de si mesmos, a bebida e o cigarro, o ruído horrível de catarro que faziam ao tossir, os aromas artificiais que usavam para esconder seu cheiro animal, o modo como os homens ficavam carecas e as mulheres enchiam o penteado de laquê, a ideia repulsiva de que eles talvez ainda estivessem fazendo sexo, sua obediência às normas sociais, sua reprovação mal-humorada de tudo que fosse satírico ou contestador, sua convicção de que o sucesso dos seus filhos seria avaliado em relação à capacidade deles de imitar bem os pais, o barulho sufocante que faziam quando concordavam uns com os outros, seus comentários sobre a comida que preparavam e a comida que comiam, seu amor por coisas que eu achava nojentas (especialmente azeitonas, cebolas em conserva, chutneys, piccalilli, molho de raiz-forte, cebolinhas, pasta para sanduíche, queijo fedorento e Marmite), sua complacência emocional, seu sentido de superioridade racial, o modo como contavam as moedas, o modo como tiravam a comida presa entre os dentes, o modo como não se interessavam o suficiente por mim, e o modo como se interessavam demais por mim quando eu não queria que o fizessem. Esta era apenas uma lista abreviada, da qual Susan estava natural e completamente excluída.” (from “A única história” by Julian Barnes)
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409. “Ah, e outra coisa. O modo como, por algum terror atávico em admitir sentimentos verdadeiros, eles ironizavam a vida emocional, transformando a relação entre os sexos em uma piada tola. O modo como os homens davam a entender que eram as mulheres que realmente mandavam em tudo; o modo como as mulheres davam a entender que os homens não entendiam o que estava acontecendo. O modo como os homens fingiam que eram fortes, e as mulheres tinham que ser mimadas e paparicadas e tuteladas; o modo como as mulheres fingiam que, apesar do folclore sexual existente, eram elas que tinham bom senso e praticidade. O modo como cada sexo admitia chorosamente que, apesar dos defeitos de cada um, eles ainda precisavam um do outro. Não podemos viver com elas, não podemos viver sem elas. E eles viviam uns com os outros no casamento, que, como diz um ditado, era uma instituição no sentido de uma instituição de doentes mentais. Quem disse isto primeiro? Um homem ou uma mulher? Não é surpresa que eu não quisesse nada disso. Ou melhor, que esperasse que isso nunca se aplicasse a mim; na realidade, que eu acreditasse que poderia impedir que isso se aplicasse a mim. Então, de fato, quando eu disse “Eu tenho dezenove anos!”, e meus pais responderam triunfantemente “Sim, você só tem dezenove anos!”, o triunfo também foi meu. Graças a Deus eu “só” tenho dezenove anos, pensei.” (from “A única história” by Julian Barnes)
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410. ““Nós fomos escolhidos pela sorte.” Eu não acredito em destino, como posso ter dito. Mas acredito agora que, quando dois amantes se conhecem, já existe tanta história pregressa que apenas alguns desfechos são possíveis. Ao passo que os próprios amantes imaginam que o mundo está sendo reiniciado, e que as possibilidades são novas e infinitas.” (from “A única história” by Julian Barnes)
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411. “Então há aquela palavra que Joan introduziu em nossa conversa como um poste de concreto dentro de um laguinho de peixes: praticidade. Ao longo da minha vida, vi amigos não conseguindo sair de um casamento, não conseguindo dar continuidade a um caso de amor, não conseguindo até começá-los às vezes, tudo pelo mesmo motivo. “Simplesmente não é prático”, eles dizem com desânimo. As distâncias são muito grandes, os horários de trem desfavoráveis, os horários de trabalho não combinam, e há a hipoteca, os filhos, o cachorro; além disso, a posse compartilhada de coisas. “Eu simplesmente não consegui dividir a coleção de discos”, uma esposa que não conseguiu se separar me disse uma vez. No auge do amor, o casal tinha juntado seus discos, desfazendo-se das duplicatas. Como seria possível desfazer isso? Então ela ficou; e após algum tempo, a tentação de ir embora passou, e a coleção de discos deu um suspiro de alívio.” (from “A única história” by Julian Barnes)
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412. “– Primeiro ponto. Eu não sou uma leva e traz. Tudo o que você disser nesta sala vai ficar nesta sala, não vai vazar. Segundo ponto. Eu não sou psiquiatra, não sou centro de aconselhamento nem gosto muito de ouvir as queixas dos outros. Eu tendo a achar que as pessoas devem seguir em frente, parar de reclamar, arregaçar as mangas e tudo isso. Terceiro ponto. Eu não passo de uma velha bêbada cuja vida não deu certo e que mora sozinha com seus cachorros. Então não sou uma autoridade em nada. Nem mesmo em palavras cruzadas, como você uma vez observou. – Mas você ama a Susan.” (from “A única história” by Julian Barnes
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413. “– Paul, querido, eu acabei de dizer que não dou conselhos. Eu aceitei o meu próprio conselho por tantos anos e veja aonde isso me levou. Então eu não faço mais isso.” (from “A única história” by Julian Barnes
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414. “Eu disse quando vocês fugiram juntos que vocês tinham muita coragem. Vocês têm coragem, e vocês têm amor. Se isso não for bom o suficiente para a vida, então a vida não é boa o suficiente para vocês. – Agora você está parecendo um oráculo. – Então é melhor eu ir lavar minha boca com sabão.” (from “A única história” by Julian Barnes
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415. “Mas com isso vem um fato cronológico brutal. Até onde você sabe, Susan só bebia ocasionalmente durante todos os anos em que esteve com Macleod. Mas agora que está vivendo com você, ela é – se tornou, está se tornando – uma alcoólatra. Isto é demais para você admitir, quanto mais suportar.” (from “A única história” by Julian Barnes
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416. “Você tem vinte e cinco anos e não está preparado para este tipo de situação. Não existem artigos de jornal intitulados “Como lidar com sua amante de meia-idade alcoólatra”. Você está por sua conta. Você ainda não tem teorias de vida, conhece apenas alguns dos seus prazeres e dores. Você ainda acredita, no entanto, no amor, e no que o amor é capaz de fazer, como ele pode transformar uma vida, na verdade, as vidas de duas pessoas. Você acredita na invulnerabilidade do amor, na sua tenacidade, na capacidade do amor de vencer qualquer oponente. Esta, de fato, é a sua única teoria de vida até agora.” (from “A única história” by Julian Barnes
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417. “Você já sabe que existe sexo bom e sexo ruim. Naturalmente, você prefere sexo bom a sexo ruim. Mas também, sendo jovem, acha que mesmo assim, pensando bem, considerando os prós e os contras, sexo ruim é melhor do que sexo nenhum. E às vezes melhor do que masturbação, embora às vezes não. Mas se acha que essas são as únicas categorias de sexo que existem, você se dá conta de que está enganado. Porque existe uma categoria que você não sabia que existia, alguma coisa que não é, como você talvez tivesse adivinhado se tivesse sabido dela antes, meramente uma subcategoria de sexo ruim; trata-se de sexo triste. Sexo triste é o sexo mais triste de todos.” (from “A única história” by Julian Barnes
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418. “Então comecei a suspeitar que estava errado em considerar o alcoolismo como sendo o oposto do amor. Talvez eles fossem muito mais próximos do que eu imaginava. O alcoolismo é sem dúvida tão obsessivo – tão absolutista – quanto o amor; e talvez para quem bebe a força da bebida seja tão poderosa quanto a força do sexo é para o amante. Então o alcoólatra poderia ser simplesmente um amante que mudou o objeto e o foco do seu amor?” (from “A única história” by Julian Barnes
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419. “Então, por fim, você começa a mentir para ela. Por quê? Algo a ver com a necessidade de criar um espaço interno que você possa manter intacto, e onde você possa permanecer intacto. E é assim que é para você, agora. Amor e verdade – para onde foram? Você pergunta a si mesmo: ficar com ela é um ato de coragem de sua parte ou um ato de covardia? Talvez ambos? Ou é apenas algo inevitável?” (from “A única história” by Julian Barnes
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420. “Um dia, surge uma imagem na sua cabeça, uma imagem do relacionamento de vocês. Você está numa janela do segundo andar da casa na Henry Road. Ela deu um jeito de saltar pela janela e você a está segurando. Pelos pulsos, é claro. E o peso dela torna impossível para você puxá-la de volta para dentro. Você mal consegue não ser puxado para fora junto com ela, por ela. Num determinado momento, ela abre a boca para gritar, mas não sai som algum. Em vez disso, a prótese dentária dela se solta; você a ouve cair no chão com um ruído de plástico. Vocês dois estão empacados ali, presos um ao outro, e ficarão assim até você perder as forças e ela cair. Isto é só uma metáfora, ou o pior dos sonhos; entretanto existem metáforas que se instalam com mais força no cérebro do que eventos lembrados.” (from “A única história” by Julian Barnes
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421. “Você costumava dizer – para evitar os amigos que queriam vir visitar – “Ah, ela está tendo um mau dia. Ela não parece a mesma”. E quando eles a viam bêbada, você dizia: “Mas no fundo ela ainda é a mesma. No fundo ela ainda é a mesma.” Quantas vezes você disse isso aos outros, quando a pessoa a quem você estava se dirigindo era na verdade você mesmo?” (from “A única história” by Julian Barnes
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422. “Às vezes quando, ligeiramente bêbada, ela está num dos seus humores aéreos, irritantes, negando tanto a realidade quanto a sua preocupação com ela, você se vê pensando: ela pode estar destruindo a si mesma no longo prazo, mas no curto prazo está fazendo mais mal a você. Uma raiva frustrante, impotente, toma conta de você, e, o que é pior, uma raiva virtuosa. Você odeia a sua própria virtude.” (from “A única história” by Julian Barnes
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423. “E também aquela questão recorrente da memória. Ele reconhecia que a memória era traiçoeira e tendenciosa, mas em que direção? Na direção do otimismo? Isso fazia sentido no início. Você se lembrava do passado em condições felizes porque isto validava a sua existência. Você não tinha que ver a sua vida como uma vitória – a dele não poderia ser considerada assim –, mas você precisava dizer a si mesmo que ela fora interessante, agradável, significativa. Significativa? Isso seria um certo exagero. Ainda assim, uma memória otimista poderia tornar mais fácil alguém se despedir da vida, poderia suavizar a dor da extinção.” (from “A única história” by Julian Barnes
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424. “Se a memória é tendenciosa na direção do pessimismo, se, olhando retrospectivamente, tudo parece mais sombrio e triste do que realmente foi, então isto pode tornar mais fácil deixar a vida para trás. Se, como dizia a velha e querida Joan, morta já há mais de trinta anos, entramos e saímos do inferno durante a vida, então por que temer o inferno verdadeiro, ou, mais provavelmente, a eterna não existência?” (from “A única história” by Julian Barnes
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425. “Quando pensava na vida no Village, se lembrava dela como sendo baseada em um sistema simples. Para cada doença, havia um único remédio. TCP para dor de garganta; Dettol para cortes; Disprin para dor de cabeça. Vick para catarro no peito. E além dessas, havia questões mais sérias, mas ainda com soluções unitárias. A cura para sexo é o casamento; a cura para amor é o casamento; a cura para infidelidade é o divórcio; a cura para infelicidade é o trabalho; a cura para infelicidade extrema é beber; a cura para a morte é uma crença frágil na outra vida.” (from “A única história” by Julian Barnes
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426. ““Ele se apaixonou como um homem que comete suicídio.” Não foi exatamente assim, mas havia um certo sentido de não ter escolha. Ele não conseguiu viver com Susan; não conseguiu estabelecer uma vida separada dela, logo voltou a viver com ela. Coragem ou covardia? Ou mera inevitabilidade?” (from “A única história” by Julian Barnes
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427. “É estranho como, quando se é jovem, não temos nenhuma obrigação para com o futuro; mas quando ficamos velhos, temos uma obrigação para com o passado. A única coisa que não podemos mudar.” (from “A única história” by Julian Barnes
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428. ““No amor, tudo é ao mesmo tempo falso e verdadeiro; o amor é o único assunto a respeito do qual é impossível dizer algo absurdo.”” (from “A única história” by Julian Barnes
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429. “Um dos efeitos permanentes da sua exposição à casa dos Macleod tinha sido uma aversão por homens raivosos. Não, não aversão, repugnância. Raiva é uma expressão de autoridade, uma expressão de masculinidade, a raiva como prelúdio da violência física: ele odiava isso tudo. Havia uma falsa virtude terrível na raiva: olhe para mim, zangado, veja como posso explodir porque estou tão carregado de emoções, veja como eu estou realmente vivo (ao contrário de todos aqueles insensíveis ali), veja como eu vou provar isso agarrando o seu cabelo e batendo com a sua cara na porta. E agora veja o que você me obrigou a fazer! Eu estou com raiva disso também!” (from “A única história” by Julian Barnes
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430. “E se isto tivesse acontecido em vez daquilo? Era inútil, mas envolvente (e talvez mantivesse a distância a questão da responsabilidade). Por exemplo, e se ele não estivesse com dezenove anos, com todo o tempo do mundo nas mãos e – embora não se desse conta disto – louco para amar quando chegou no clube de tênis? E se Susan, por escrúpulos religiosos ou morais, tivesse desencorajado o interesse dele, e ensinado a ele apenas as táticas mais mirabolantes do jogo de duplas mistas? E se Macleod tivesse continuado a ter interesse sexual pela esposa? Nada disso teria acontecido.” (from “A única história” by Julian Barnes
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431. “Agora, em seu estado de calma lentamente conquistado, ele descobriu que podia facilmente imaginar outras coisas além do que eles foram; fatos e sentimentos inteiramente diferentes. Curioso, ele seguiu este caminho até então ignorado. Por exemplo, ele começou a ajudar o Velho Macleod com sua jardinagem. Além de jogar tênis com Susan, ele começou a jogar golfe, ter aulas no clube e frequentemente jogar com Gordon – como este pediu a ele que o chamasse – por todos os dezoito buracos enquanto o orvalho ainda brilhava no campo. Havia algo na presença dele que acalmava o Velho Macleod: aquele jeito ranzinza era só uma máscara, e Paul o ajudava a relaxar um pouco no campo de golfe; ele até o ensinou (depois de consultar um manual de golfe americano) a amar aquela bolinha peluda, em vez de odiá-la. Ele – o Figuraça, como mais gente do que Susan o chamava agora – descobriu que gostava de beber: gim com Joan, cerveja com Gordon, um cálice ocasional de xerez com Susan; embora todos concordassem que a certa altura ele já tinha bebido o suficiente e que não devia beber mais nada. E então – por que não prosseguir com esta vida paralela até uma conclusão se não lógica pelo menos convencional – e se ele e uma das filhas dos Macleod começassem a “se gostar” (como diriam seus pais)? Martha ou Clara? Obviamente Clara, que era mais parecida com Susan. Mas isto era contrafactual, então ele escolheu Martha.” (from “A única história” by Julian Barnes
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432. “Não, ele poderia ter continuado agindo como o suporte emocional dela, vendo sua progressiva destruição. Mas ele teria que ser um masoquista. E naquela época ele tinha feito a descoberta mais assustadora da sua vida, uma descoberta que provavelmente lançou uma sombra sobre todos os seus relacionamentos subsequentes: a descoberta de que o amor, mesmo o mais ardente e o mais sincero, pode, quando devidamente agredido, se transformar em uma mistura azeda de piedade e raiva. Seu amor tinha desaparecido, tinha sido expulso, mês a mês, ano a ano. Mas o que o chocou foi que as emoções que o substituíram eram tão violentas quanto o amor que ele tinha antes no coração. Então sua vida e seu coração continuaram tão agitados quanto antes, só que Susan não era mais capaz de aliviar seu coração. E foi então que, finalmente, ele teve que mandá-la de volta.” (from “A única história” by Julian Barnes
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433. “– Não faço ideia. E de certa forma não estou interessado. Eu não estou interessado, senão vou ser arrastado de volta para dentro de todo aquele caos. – Não é uma questão de ser arrastado de volta. Você ainda está nele. – Como assim? – Você ainda está nele. Você sempre estará nele. Não literalmente. Mas no seu coração. As coisas nunca terminam, não quando ferem tão profundamente. Você vai estar sempre ferido. Essa é a única opção, após algum tempo. Viver ferido ou morrer. Você não concorda?” (from “A única história” by Julian Barnes
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434. “Mas o que o fizera realmente desistir foi uma espécie de náusea. Ele explicou que se você passasse várias horas por dia com o braço enfiado no traseiro de uma vaca, você não podia deixar de respirar as exalações nocivas do animal. E que quando estas exalações estavam dentro de você, elas buscavam inexoravelmente uma forma de tornar a sair. Alan parou por aí sua explicação. Mas Paul naturalmente imaginou Alan na cama com uma namorada, e tudo indo bem entre eles, até que uma quantidade catastrófica de peido de vaca sai de dentro dele e a garota pula da cama, corre para pegar suas roupas e nunca mais aparece. Ou talvez isto não tivesse acontecido, mas Alan não suportasse a ideia de como seria se ele estivesse com alguém a quem amasse. Que fim levou Alan? Ele não fazia ideia. Mas a história de Alan ficou na sua memória desde então. Porque uma vez que você tivesse passado por certas coisas, a presença delas dentro de você nunca desaparecia de verdade. O peido de vaca teria que sair, de uma forma ou de outra. Então você teria que viver com as consequências até ele se dispersar.” (from “A única história” by Julian Barnes
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435. “Enquanto o que ele usava para se gabar era: veja como o meu relacionamento é muito mais transgressivo do que o seu. E ainda: veja a força dos meus sentimentos por ela e dos dela por mim. Que era o que contava, claro, porque a força do sentimento determinava o grau de felicidade, não é? Isto parecia absolutamente lógico para ele na época.” (from “A única história” by Julian Barnes
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436. “Então agora ele entendia melhor por que os casais se agarravam às suas histórias – cada um, frequentemente, a uma parte diferente dela – muito depois de ela ter terminado, até depois de terem chegado ao ponto de não terem certeza se seriam capazes de suportar um ao outro. O amor ruim ainda trazia os vestígios, a lembrança, do amor bom – em algum lugar, lá no fundo, onde nenhum dos dois queria mais cavar.” (from “A única história” by Julian Barnes
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437. “Ele folheou algumas anotações riscadas, depois tornou a guardar o caderno na gaveta. Talvez aquilo tivesse sido sempre uma perda de tempo. Talvez o amor não pudesse ser nunca capturado em uma definição; ele só podia ser capturado em uma história.” (from “A única história” by Julian Barnes
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