A editora Âyiné publica em breve no Brasil mais uma obra da filósofa italiana Donatella Di Cesare, Stranieri residenti: una filosofia della migrazione. O livro perpassa, com amplitude e profundidade, a migração do ponto de vista da Filosofia, resgatando formas como o tema aparece desde a antiguidade até os tempos atuais. A tradução é de Cezar Tridapalli. Abaixo, um pequeno excerto do livro, que deve sair ainda este ano:
Assim, não se trata somente de uma lacuna insuperável, que, apesar de tudo, ainda permanece entre o “nós” e o “vós”. O que aprofunda o hiato, o que expõe ainda mais a fratura, é a massa indecifrável dos “não-nós” a que o “eles” é condenado. Fazer para si uma imagem do outro não é pouca coisa. Já é difícil com familiares, amigos, conhecidos. Vale para os estranhos, sobretudo para os estrangeiros. A dor dos outros, mesmo quando é evidente, flagrante, inegável, pode ser ignorada por meio da indiferença. Pode-se chegar a causá-la – como é o caso da tortura[1]. A longa e complexa tradição fenomenológico-hermenêutica, que teve o mérito de refletir sobre o “outro”, mostrou o próprio limite assumindo este outro como indivíduo[2]. A atenção está focada na sim-patia, na com-paixão, em “colocar-se no lugar do outro”, que muitas vezes é considerado um processo imediato e instintivo. Nesse lugar do outro não se consegue jamais entrar e a pretensão parece suspeita, porque remete a um sinal de apropriação. É um erro, uma ilusão, que recentemente encontrou na palavra mágica “empatia”, retomada pelas ciências cognitivas, uma nova credibilidade.
Se não é possível se colocar no lugar de um outro, há condições de, pelo menos, imaginar a dor dos outros, o sofrimento, a angústia, o tormento. O trabalho da imaginação, porém, não é facilitado pelas imagens correntes, que não revelam os contornos individuais, as características e peculiaridades do indivíduo. A imaginação é eclipsada pelo número, inibida pela massa. Por um átimo o olhar se fixa sobre uma mulher que, vacilando, desce de um navio. Mas como experimentar alguma sensação sem conhecer a história dela, sem saber nada dela? O exemplo contrário é o da literatura, que transporta além de si, em direção ao outro, mesmo que esse outro, como, por exemplo, Anna Karenina, seja fictício. Os efeitos políticos e éticos da generalização são devastadores. Longe das palavras, acompanha-se uma sequência de imagens capazes apenas de bloquear a imaginação. Quanto mais o bloqueio se repete, mais se é levado a identificar-se com o grande “nós”, distanciando de si a massa dos múltiplos “eles”. Em tal universo, reduzido à fixidez do preto no branco, o ódio passa a existir.
Não é um ódio natural e espontâneo. É mais cultivado, nutrido, alimentado. Segue modelos, implica padrões e caminhos: o gesto discriminatório, as ideias de humilhação, as palavras de zombaria. No centro do rancor coletivo está o indivíduo finalmente livre para odiar. Mas o ódio livre tem pouco a ver com a liberdade. Ser livre para odiar é uma triste condenação. E é indício de frustração existencial, fanatismo identitário, impotência política. De um lado o “nós”, de outro o “não-nós”, obscuro e monstruoso, repugnante e detestável, culpado pelo “nosso” mal-estar – não importa como, não importa por quê. Mas culpado.
(…)
“Nós” – “eles”. Os pronomes não são indiferentes. Situam indivíduos e grupos na fala, delimitam seus papéis, endereçam seu discurso. São as primeiras fronteiras marcantes, as linguísticas. Estranhamente não foi ainda escrita uma filosofia dos pronomes[3].
O que então significa dizer “nós”? O sentido é ambivalente. “Nós” é a primeira forma gramatical da comunidade. Deveria, portanto, incluir. No uníssono do “nós” parecem fundir-se o “eu” e o “tu”. Não se pode negá-lo. No entanto, o “nós” tem sempre um tom amargo. Porque inclui ao mesmo tempo que exclui. O “nós” remete implicitamente também ao “vós”, que não é só o resultado de uma cisão, mas já tem quase um acento bélico. Para não falar do “eles”, ou pior, do “aqueles”. O que o “nós” diferencia de si torna-se o “vós”, que ainda tem uma dignidade pessoal, mesmo que marcada pela hostilidade; aquilo que, ao contrário, o “nós” não pode alcançar, que não pode enxergar, uma vez que está fora de seu campo luminoso e sonoro, cai no obscuro e mudo “eles”.
Apenas pronunciado, o “nós” tropeça o tempo todo nos próprios limites, no “vós” que tem diante de si, no “eles” que fica em segundo plano. Pode aspirar a incluir. Ou pode se fechar num espasmo identitário – até tornar-se um “Primeiro Nós!”. Nesse caso, o “nós” revela-se tão pequeno e vazio que, para se sentir mais forte, precisa de um “não-nós”. E quem melhor do que “imigrados clandestinos” para que o “nós” adquira relevância e visibilidade?
[1] Cf. SCARRY, E. “Das schwierige Bild des Anderen”, in BALKE, F., HABERMAS, R., NANZ, P. e SILLEM, P. (org.). Schwierige Fremdheit. Über Integration und Ausgrenzung in Einwanderungsländern. Fischer, Frankfurt a. M. 1993, pp. 229-63; a respeito do tema, permit-me remeter DI CESARE, D. Tortura. Bollati Boringhieri, Torino, 2016.
[2] Para uma visão de conjunto, pode-se tomar como referência THEUNISSEN, M. Der Andere. Studien zur Sozialontologie der Gegenwart, de Gruyter, Berlin, 1977.
[3] Passos importantes nessa direção foram dados pelo grande filósofo da linguagem Wilhelm von Humboldt, cujas ideias foram retomadas por Franz Rosenzweig na sugestiva gramática teológico-política incluída em seu livro La stella della redenzione. Estas são as duas fontes preciosas, muitas vezes desconhecidas e negligenciadas, da reflexão de Martin Buber sobre o “tu”.
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