RESENHANDO
Corpos em trânsito, vidas em transe: o novo romance de Cezar Tridapalli
Parece-me que a prosa, da parte do escritor, convida a um certo desleixo, ao automatismo verbal, a trilhar sempre o velho e conhecido caminho: no caso, uma escrita relativamente fluida, relativamente transparente, relativamente insossa. Por que reinventar a roda se o leitor, mesmo o leitor sofisticado, ao fim e ao cabo está interessado mais no desenlace da trama? Por outro lado, há quem desconstrua a prosa, convertendo-a num sucedâneo da poesia, e em poesia hermética. Felizmente são poucos, mas como nem todos são Joyces ou Guimarães Rosa, o resultado é uma prosa espessa, mas não densa, cujo esforço de percorrê-la não vale as eventuais pepitas encontradas.
O curitibano Cezar Tridapalli consegue escapar dessas duas armadilhas. Em seu terceiro romance, Vertigem do chão (Editora Moinhos, 2019), encontramos novamente as virtudes já visíveis em Pequena biografia de desejos (2011) e O beijo de Schiller (2014): a prosa bem elaborada e uma história bem costurada. Só que aqui estas qualidades alcançam um novo patamar de realização. Com efeito, tanto em termos temáticos quanto formais é um romance ousado e muito bem-acabado. A linguagem, sem derrapar nos excessos da prosa poética, foge aos lugares comuns de boa parte das narrativas contemporâneas (há escritor que acha que ser moderno é escrever mal). E o enredo é muito bem estruturado, funcionando como engrenagens devidamente azeitadas dentro de um maquinário exato.
A história gira em torno de dois protagonistas que são como que antípodas e só se encontram acidentalmente no final do livro: o holandês Stefan Bisschop e o brasileiro Leonel da Silva. Ambos então com cerca de 30 anos, o primeiro é atleta, obcecado com o condicionamento físico; o segundo é dançarino. Detalhe: os dois são gays mais ou menos bem resolvidos, não obstante os traumas de Leonel com um pai homofóbico.
Stefan, de Utrecht, a quarenta minutos de Amsterdã, teve o namorado assassinado por um radical islâmico e até para buscar novos ares acaba vindo para Curitiba, numa época (Copa do Mundo e Olimpíadas) em que o Brasil estava bombando. Leonel, por sua vez, resolve sair do Brasil porque de uma forma meio vaga está cansado de sua vida no país. No Brasil, Stefan vai trabalhar numa academia de elite e fica amigo de um outro imigrante: o haitiano Desimond, pobre e preto. Em Utrecht, Leonel divide uma residência com Fadilah, igualmente imigrante, marroquina, professora universitária, lésbica e muçulmana, alguém que tenta conciliar a fidelidade às raízes com a tolerância da sociedade ocidental moderna. Acontece que a ultraliberal Holanda já não é mais uma ilha de inclusão: o ex-namorado de Stefan, por exemplo, militava em movimentos de direita que, com a bandeira de salvaguardar as conquistas da modernidade, combatia a imigração sobretudo islâmica.
Assim, se Stefan vai sofrer o preconceito de um Brasil que nunca deixou de ser homofóbico, Leonel será vítima de xenofobia numa sociedade que não se escandaliza diante de um beijo gay, desde que não seja interracial… É com esse cenário de encontros e confrontos de identidades desterritorializadas que se desenrola a história: corpos estranhos em trânsito e em transe por um mundo globalizado que se estranha. A onda reacionária que ora engolfa o Brasil, trazendo à tona espectros que se julgavam superados, é um fenômeno global, que apenas se adapta às idiossincrasias de cada país.
Além desse tema atualíssimo, o que chama atenção no romance de Tridapalli são os procedimentos narrativos: as duas histórias são contadas simultaneamente, mas em vez do método mais costumeiro de alternar o foco narrativo em capítulos ou parágrafos, aqui a mudança se dá, com cortes secos, no interior do mesmo parágrafo, o que exige um leitor extremamente atento. Mas vale a pena esse empenho: da linguagem que foge aos clichês aos enquadramentos quase cinematográficos, estamos diante de um belíssimo e doloroso romance – um dos melhores lançados no melancólico ano que se findou.
Otto Leopoldo Winck é poeta e romancista, autor de Que fim levaram todas as flores, lançado em 2019 pela Kotter editorial.
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