“O desejo quer acima de tudo desejar” José Gil
A célebre frase Emma Bovary c’est moi (“Emma Bovary sou eu”), do autor Gustave Flaubert, foi a maneira inteligente e irônica que o escritor encontrou para responder as acusações que sofrera após ter escrito o romance Madame Bovary, em 1857.
Flaubert, após a publicação de seu livro, na França do século XIX, foi levado ao Tribunal e acusado de ofensa à moral e à religião. Madame Bovary (um de meus romances preferidos) é considerado por alguns teóricos como a primeira obra literária realista.
Da mesma forma que Emma Bovary é Flaubert, ela também pode ser eu, pode ser você, pode ser qualquer outra pessoa, mesmo duzentos anos depois de ter sido escrita e pensada. Talvez seja isso o que tanto me encanta na literatura: esse potencial de sermos outro, outros. A literatura é um convite à alteridade.
Em Pequena biografia de desejos, através de Desidério, um porteiro curitibano que sonha em escrever um livro, o escritor e tradutor Cezar Tridapalli desenha personagens e vida num jogo mosaico de encontros, de passado e presente, de desejo e de destino.
Desidério, do escuro de sua guarita, anota frases de livros debaixo de sua mesa de trabalho. Desiderio utiliza as “aspas” como procedimento para ir criando e tecendo seu próprio livro. O porteiro inscreve na madeira de sua mesa palavras que despertam seus olhos e desejoS.
Assim como o porteiro, após o fim da leitura do livro Pequena biografia de desejos, dei-me conta de que arranquei dele pedaços, sublinhei partes que me tocaram e os escondi em algum móvel dentro de mim.
“… a demonstração de sensibilidade sempre precisou ser vigiada entre meninos”
Longe de ser uma obra metalinguistica, Pequena biografia de desejos aponta questões ligadas ao fazer literário bem como abriga de maneira precisa e intertextual outras obras literárias. Distante também de ser um livro panfletário e bairrista, o romance de estreia de Tridapalli reflete em alguns momentos sobre leitura e sobre a relação do brasileiro com o acesso à palavra escrita (reflexão) e também passeia por paisagens e ruas conhecidas de Curitiba.
Desidério, que vem da palavra desiderium, e significa desejo, é assim como são as pessoas, como é Madame Bovary, como é Macária (a esposa do protagonista): cheio de lugares escondidos e desejos, de simplicidades e fantasmas, de vida e de morte, de alegrias e frustrações.
“… Sabia que existiam confissões que só se faziam à própria consciência, assim como também sabia que este último pensamento, tal qual pensara, não era dele. As revelações que fazia à própria consciência jamais saíam de sua boca”
O livro e os personagens de Tridapalli (como nossa vida?) são compostos por histórias e digressões, e eles, os personagens, se cruzam de maneira casual, ou planejada, tecendo assim uma narrativa de tom biográfico, mas não por narrar de maneira linear a vida de uma pessoa, mas por construir uma vida (livro) na relação com outras vidas (obras).
O realismo poético utilizado pelo autor para escrever as 219 paginas que compõem seu livro de lançamento, torna a leitura agradável e leve, sem tornar o livro superficial ou facilitador.
Da descrição do tênis Kichute à narração dos desejo sexuais de Desidério, Cezar Tridapalli busca, pelas palavras que se tornam imagens, a complexidade e o trabalho árduo que é se aproximar de uma pessoa-histórias numa construção ficcional.
Em uma das passagens do livro, Desiderio se pergunta quais marcas os 42 autores que lera até então deixaram no mundo e no seu mundo? Desidério, como Cezar Tridapalli, se questionam para que servem os livros, e apontam algumas respostas provisórias.
Para que servem os livros?
Abro apenas um lado de uma “aspa” como forma de dizer que o que escrevo são palavras de Desidério, mas também são minhas, dos autores que li ou lerei e que só você que agora está lendo pode fechá-las.
“Talvez os livros sirvam para nos dar habilidade de propor mais perguntas, de nos preocupar com a gravidade sobre o tudo. O corpo mirrado e morto, ali na minha frente também me faz pensar sobre a gravidade. Um livro serve para ser lido, como o desejo serve ao corpo, ou o corpo serve ao desejo. Um livro serve para alimentar e destruir ilusões. Um livro é um desejo que se direciona a outros desejos. E alguém que grita em palavras. Um livro serve para ser lido…
Pequena Biografia de desejos precisa ser lido.
Ronie Rodrigues é bailarino.
Fonte: http://entreconexao.blogspot.com/
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