Em sua edição de junho de 2014, o Jornal RelevO publicou trecho do romance O beijo de Schiller. Trata-se de um fragmento particularmente interessante, uma vez que, por meio dele, é possível conhecer um pouco melhor a personalidade do suposto protagonista, Emílio Meister. Se o ditado diz que, quando se fala do outro, isso mostra mais a respeito de quem fala do que do alvo comentado, então podemos ver Meister em ação. No excerto publicado, ele conversa com seu inusitado sequestrador sobre a própria mulher, Eugênia.
Confira a edição de junho do Jornal Relevo clicando aqui. O fragmento referido se encontra na página 16 do jornal, mas pode ser lido abaixo também.
Trecho do romance O beijo de Schiller, editora Arte&Letra, 2014, vencedor do Prêmio Governo de Mionas Gerais 2013:
“Ela tem certo receio de caminhar aqui na Schiller, embora jamais vá admitir isso. Antes dessa pesquisa que ela insiste em chamar de estudo sobre o comportamento coletivo e o grau de coesão social das pessoas que assistem a missas, ela fez um trabalho aqui, arregimentando alunos entusiasmados, um trabalho prático-teórico que estudou e estabeleceu estratégias de integração entre os idosos que jogam bocha e damas e os jovens que deslizam em seus skates na pista cerca de cem metros mais adiante, aquela com a caveira de asas que você achou engraçada. Ela insiste em dizer que a Sociologia precisa se traduzir, a partir da pesquisa, em estratégias práticas. Por isso reuniu um grupo de estudos da universidade, propôs uma extensão que ligasse — a expressão era dela — o jovem potente e o idoso poente, a juventude que corre riscos e a velhice que tem na serenidade, na bocha e nas damas, um ponto de descanso para o descanso final. Ela queria estudar a relação entre o espaço e o corpo domesticado, aproveitando a formação em arquitetura para trabalhar sociologia, Foucault como guru. Quis experimentar ainda a superação de suas categorias de corpo obediente, condicionado a fazer as escolhas que não fez, mas que alguém fez por ele. Engraçado, sou capaz de ouvir a voz dela falando isso, como se estivesse ao nosso lado. Ela achava que conseguiria a minha simpatia séria se temperasse o trabalho com excertos literários. Em Dom Casmurro, de Machado de Assis, o protagonista começa contando a história dele. Já está velho e promete, a frase é célebre, atar as duas pontas da vida e restaurar na velhice a adolescência. Eugênia misturou Foucault e Machado, dizendo que a Schiller era a rua que conseguia atar as duas pontas da vida, unir extremos, começava com velhos jogando bocha e caminhava até a pista de skate. Isso porque não quis ir mais fundo, já que a rua ainda traz escorregadores e suporia ainda a restauração da velhice na infância. Ela quis ser fiel à epígrafe do trabalho, que era a frase do Machado. A pesquisa então consistiu em estudos preliminares sobre integração entre jovens e adolescentes, características da juventude, seus guetos e comportamentos, e, de outro lado, tentava entender a nova tendência de valorização da chamada terceira idade, aprender a conviver com essa faixa que estendia sua expectativa de vida e ganhava grande atenção do mercado, que via ali mais consumidores. A partir desse sobrevoo genérico, alunos foram a campo tentar compreender aquela realidade específica, de jovens e velhos que frequentavam a rua Schiller, no que se enquadravam e no que fugiam àquilo que a teoria prescrevia. Um estudo a priori seguido de uma descrição a posteriori, checagem de dados, conclusões. Para celebrar a finalização do estudo, Eugênia organizou, em um domingo ensolarado, feito e perfeito para a rua Schiller, uma grande festa de integração. Estudados em suas partes, era a hora de colocar jovens e idosos para conviverem, trocar experiências, arriscarem a desobediência salutar do corpo, desinstalá-los de suas zonas de conforto, de suas baias habituais para conhecer o novo, desestabilização que gera movimento, que obriga a caminhar (ela queria usar como abertura de capítulo a imagem da terceira perna que paralisa, de Clarice Lispector em A paixão segundo G.H., e eu só lembro de ter dito Eugênia, faça-me o favor). O domingo estava mesmo deslumbrante. Organizaram oficinas de bocha e damas para os jovens, ousaram incentivar os velhos a subirem na prancha do skate. O comportamento ressabiado de ambos os grupos era visto por Eugênia como comprovação das hipóteses que levantara no trabalho, mostrava a dificuldade que temos de nos jogarmos no desconhecido, de ampliarmos a experiência sensória e intelectual, corpo e mente indissociáveis. Nisso, mesmo os jovens, sempre vistos como ousados, também eram conservadores. Cada um a sua maneira, os dois grupos mostravam desdém pela atividade do outro. Era isso que mudaria ao final do dia, ao final daquela vivência que prometia ser a cereja do bolo de um trabalho tão intenso e bonito. Mesmo minha crueldade competitiva não foi capaz de escarnecer: o que se viu foram meninos atirando uns nos outros aquelas pesadas bolas de bocha, entre gargalhadas em falsete. As poucas tentativas de jogar a sério eram logo seguidas de mais brincadeiras, desapego às regras, um querendo acertar a bola do outro com força, esquecendo o objetivo do jogo. No jogo de damas, nenhuma partida terminou. Os meninos riam para uma menina e só falavam em comer dama, brincadeira erótica de quem estava começando a se aquecer com o assunto, e gritavam uns aos outros, comi tua dama, te comi, e já entrou insinuação e trocadilho forçado entre dama e mãe e comi tua mãe e seu filho da puta e tal. O saldo foi um tornozelo atingido por uma bola de bocha, vários buracos fundos na cancha, peças de dama espalhadas pelo chão, juntadas com paciência e vagar pelos alunos de Eugênia, que não sabiam o que fazer. Na pista de skate, quase houve um acidente grave com o velhinho que caiu ao ser forçado (Eugênia disse ‘encorajado’) a fazer umas manobras. Como alguém que em filme de comédia escorrega em uma casca de banana. Surgiram boatos na hora sobre ele ter ou não ter osteoporose, quiseram chamar ambulância, deixá-lo deitado sem mexer a coluna cervical enquanto ele esperneava dizendo que o deixassem levantar e ir embora em paz. O dia acabou com um sol que deixou amarelas todas as multicores do lugar. Não existisse a humanidade e o dia estaria perfeito. Esse dia bonito, no entanto, terminou com gargalhadas de jovens irreverentes e arrogantes, e irritação dos velhos que só queriam, pelo amor de Deus, ficar quietos em seus cantos. Depois de um tempo que julguei seguro, quando avaliei que o peso da decepção já havia passado, disse a Eugênia que ela deveria modificar o título do trabalho para algo do tipo a importância da desintegração social e do apartheid entre velhos e jovens. Avaliei mal, o peso ainda estava lá, ela me mandou à merda e tomar no cu, vai se foder, seu animal. Cinco segundos depois ainda repetiu: seu animal. Disse que retomaria o projeto, com outra metodologia. Os velhinhos que não a ouvissem, pensei. Talvez por isso é que não goste de caminhar por aqui. Nunca mais tocou no assunto e agora está lá, beatinha, pesquisando o quanto as pessoas que vão à missa configuram uma mundividência comum capaz de fazê-las agir também em comum, justificando o uso do termo comunidade. Afinal, congregação, comunidade, igreja, ecclesia são todas palavras do mesmo saco, me disse ela, usando outros termos, claro, e significam coesão, reunião em prol de algo comum. Se a fé se mede em obras — e o que o cu tem a ver com as calças, eu me pergunto —, que obras as pessoas unidas pela fé promovem em conjunto? Enfim, é isso que ela está pesquisando. Estudos ultra-profundos e cheios de epígrafes e mais Foucault para provar que cavalo tem chifre, pois qualquer um sabe que uma missa é um negócio formal no qual as pessoas vão para ficar olhando o relógio, por medo do inferno, por uma convenção ainda não questionada, por um hábito de infância, ou para olhar a bunda das mulheres na fila da comunhão. Isso eu não posso falar para Eugênia, ela esmagaria a sobrancelha no teto e comeria meu fígado, mas eu digo a você: não há coesão social alguma em quem vai à missa. Há gentes de todo o tipo, patrão que explora empregado, empregado que xinga e desvia da empresa, pessoas de bem que seriam boas sem ir à missa, pessoas más que acham que gastar uma hora é a garantia da purgação dos pecados, e saem novinhas em folha para continuar na lama das diversas sacanagens. Gente que tem medo de que Deus puna a curiosidade de querer ir além, de comer maçãs proibidas e mulheres e homens, ou medo de que Ele provoque um dilúvio na sua cabeça, que mate animais afogados, que não tiveram culpa alguma das ações humanas, jogue gafanhotos na sua plantação, que peça para matar um filho, que provoque a inveja entre irmãos a ponto de um matar o outro. Uma propalada perfeição que precisou de rascunho, viu que a coisa tinha saído errada, inundou o planeta durante quarenta noites e dias — e precisava? Não bastaria um estalar de dedos para todos sumirem? — para começar de novo, mas começar da mesma forma porque tudo deu errado outra vez. Errar é humano, mas persistir no erro é divino? Outros têm certeza de que Deus é amor, que Ele perdoa os nossos pecados, que é misericórdia sem fim e adora as criancinhas mesmo tendo José dado o péssimo exemplo de fugir com Jesus sem avisar as outras mães e pais que Herodes iria provocar uma carnificina. Alguns acham que a desgraça humana é uma provação divina e que a vítima precisa se fortalecer e enfrentar a provação. Outros acham que Deus é tão bom que é capaz de lhes dar um carro, uma casa e um gol do time favorito na final do campeonato. Deus dá presente e lança todo tipo de praga, ama as criancinhas e pede a Abraão para matar o próprio filho. Um caso de fenomenal bipolaridade. E Eugênia já andou me sondando para ver o que eu achava de ela usar outro trecho do Machado de Assis, agora do conto ‘A igreja do diabo’, na epígrafe desse novo trabalho, que ela está fazendo quase sozinha, dando tarefas pouco importantes aos alunos que, segundo ela agora diz, só atrapalham. Ela quer, enfim, provar o grau de coesão social de quem vai à missa, coesão refletida na prática das boas ações. Ela vai passar não sei quanto tempo estudando isso. Era só me perguntar o grau de coesão que eu responderia a ela em um segundo: nenhum. Ela me mandaria para a puta que me pariu, diria que eu era raso, seria capaz de maldizer minha literatura feita de carne podre para os abutres sadomasoquistas que eram meus leitores. Isso ela já me disse uma vez. Só sei que, da crueldade profunda até a bondade mais inimaginável, a humanidade é capaz de ir aos extremos. Tudo comporta Deus. Então é fácil de acreditar: Deus é qualquer coisa.”
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