Originalmente publicado no blog Coração de Maizena.
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“Um escritor é uma contradição” (Marguerite Duras)
Toda literatura é de alguma forma uma travessia, e foi com o livro O Beijo de Schiller, romance de Cezar Tridapalli, que atravessei um oceano. Todo fim de um bom romance para mim é também uma morte, ou melhor, uma petite mort, como a língua francesa também denomina o gozo. Falo de literatura. Não, falo de vida. Melhor: falo apenas de uma travessia.
Um livro é uma travessia acompanhada. Ele é um parceiro justamente por nos permitir a solitude. Ler é um aconchego e um convite para essa nossa condição solitária.
Iniciei a leitura de O Beijo de Schiller ainda no Afonso Pena e troquei duas vezes de aeroporto para chegar ao meu destino final, e foi com ele que atravessei paisagens, climas, estações até chegar num outro continente.
Existe outra expressão em francês para denominar um tipo de romance fácil, que não exige muito do leitor e que serve para esperar a chegada do trem: é o roman de gare (romance de rodoviária)
O beijo de Schiller não é nem literatura de rodoviária, muito menos de aeroporto, embora seja um ótimo companheiro. Mas, ao contrário de fazer o tempo passar rápido, ele suspende o tempo e cria algumas camadas de realidade.
A história é sobre um sequestro e sobre tornar-se refém, e Tridapalli evita possíveis clichês e constrói uma trama com a astúcia de um romancista experiente ou de um prisioneiro que conhece a saída de sua prisão.
O Beijo é irônico e erótico. E por ser erótico, é corpo, e a dicção e grafia de Tridapalli fogem de alguns lugares comuns, mesmo quase resvalando em um deles, que é um personagem escritor que escreve um livro dentro do próprio livro.
O que Cezar narra é tão realista por flertar justamente com o absurdo. Falo de literatura. Não, falo de vida. Melhor: falo apenas de uma travessia.
A Curitiba de Tridapalli tem um frescor e uma atualidade que se diferenciam, com todo o respeito ao mestre Trevisan, de sua Curitiba vampira. O beijo de Schiller não é um livro bairrista, mesmo assumindo e citando nomes de ruas, de bares e de paisagens curitibanas.
Da mesma forma que em o seu primeiro romance (Pequena Biografia de desejos, 7letras), O Beijo de Schiller problematiza a ficção e nossa condição urbana, classe média. Ele revela ao leitor e aos próprios personagens a dimensão dramática e patética da vida. O sequestro, n’O Beijo, é uma metáfora também de paternidade, de casamento ou simplesmente de amor. Ou talvez não seja metáfora alguma.
O lirismo em todo o livro é construído e desconstruído a cada parágrafo de maneira inteligente, da mesma maneira que o humor e as digressões que atravessam as 272 páginas do romance.
O leitor em um certo momento é convidado a ficar de costas, ameaçado por um revolver, apenas a escutar a água que escorre de um corpo jovem que possivelmente se masturba. Quão cúmplices podem se tornar um sequestrador e um refém?
Assim como o personagem Emílio, eu também me tornei voluntariamente refém da escrita desse romance e me permito aqui reescrever a dedicatória feita pelo escritor no meu livro, pois “na vida toda narração é em primeira pessoa”.
“Ronie, caríssimo, me ajude a responder: Pietà ou Putaria?”
Caro Cezar, não consigo ainda responder à sua questão, pois para mim tudo isso é apenas redenção.
Obrigado
Ronie Rodrigues
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