José Castello figura entre os principais críticos literários da atualidade. Em ‘Espelho cruel’, escrito para o seu blog Literatura na Poltrona, do jornal O Globo, Castello fala sobre O beijo de Schiller: “O romance de Tridapalli promove uma revelação. Não do extraordinário, ou do fantástico, mas daqueles aspectos mais dolorosos que guardamos dentro de nós”. Leia a resenha na fonte original clicando aqui. Abaixo, a sua transcrição integral.
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O espelho cruel
Só um grande choque, soma da violência com o inesperado, consegue algumas vezes desnudar a vida cotidiana. Um rasgão que, enfim, expõe seu vazio, seus limites, sua mediocridade. É o que ocorre com Emilio Meister, o protagonista de “O beijo de Schiller”, novo romance do paranaense Cezar Tridapalli. Viajando pelo litoral de Santa Catarina, Meister e a mulher Eugênia se tornam reféns de um rapaz armado com um revólver. O sequestro subverte e denuncia o vazio que define a existência do casal. A ruptura – que os transporta para uma segunda vida – se parece, bastante, com aquela que a própria ficção instaura em nosso cotidiano.
Aos 48 anos, Emilio Meister é um escritor de sucesso e fama. Uma figura da mídia. Sua filha Vitória, porém, o vê como um homem oco e corrompido pelos prêmios. Com um revolver _ e não com uma pena _ um jovem sequestrador surge para reescrever sua vida. Meister precisa da presença desse tirano para enxergar as convenções sociais eu que se aprisiona. Diante da liberdade louca do rapaz, que nada tem a perder além da própria vida, sua rotina de classe média se revela só um script vazio. Meister tem todas as oportunidades para fugir de seu algoz, mas simplesmente não foge. Uma força enigmática a ele o prende. Ao rasgar sua vida de aparência e confrontá-lo com a brutalidade do real, o rapaz reescreve seu destino.
No romance de Tridapalli, a funesta aventura de Meister se mistura com um romance que ele está escrevendo, protagonizado por certo Luka, um jovem virgem de 25 anos obcecado pelo erotismo e pela saúde. As carências do personagem, que se misturam às suas próprias, contrastam com a autenticidade do sequestrador que, como nada tem a perder, nada tem também a esconder. O tema de O beijo de Schiller é o embate eterno entre o artifício e a verdade. Diante do jovem, o veemente Meister vacila. “Os sentidos se embaralham e se anulam. O entendimento cai por terra”. Não é só a ameaça física que o agita. Há uma convulsão interior, que o rapaz instaura, e que se propaga por toda a sua história pessoal.
As exigências do rapaz são simples. “Eu queria que vocês olhassem para a frente e continuassem a viagem”. Ele lhes adverte a respeito dos riscos de descumprir suas ordens: “A única saída vai ser sair da vida”. Levam o rapaz para casa, em Curitiba. De certo modo, Meister “adota” o sequestrador, seguindo assim uma velha tese pessoal a respeito da educação dos filhos: “deixe-o ser o que ele é”. A presença do rapaz o leva a fazer um balanço de sua existência. “Eu começava a achar que ele não estouraria os miolos de ninguém”, admite. Ainda assim, se submete. E passa a tratar seu tirano como seu confessor.
Meister é um prisioneiro de sua máscara social. “Quanto mais ficção escrevo, mais perco minha força de fabulação na vida concreta”. Quando tenta narrar sua vida, descobre-se preso a couraças secretas. O rapaz denuncia, assim, o grande teatro de sua existência. A presença do sequestrador confirma sua tese pessoal de que existem dois tipos de homens: aqueles presos ao presente e que vivem com naturalidade, e os prisioneiros do passado, que vivem para repeti-lo. Agora sabe que faz parte do segundo grupo. Precisou de um choque para, enfim, ver. O romance de Tridapalli promove, assim, uma revelação. Não do extraordinário, ou do fantástico, mas daqueles aspectos mais dolorosos que guardamos dentro de nós.
(Texto publicado no “Segundo Caderno” de O GLOBO no dia 05/09/14)
* Leia também: Encontros e choques no segundo romance do escritor curitibano Cezar Tridapalli
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