O Beijo de Schiller, de Cezar Tridapalli – passeio por entrelinhas de asfalto
Um dedo puxado para trás e pronto: o gatilho seria disparado e a bala perfuraria a massa cinzenta, aquela chamada de cérebro e talvez responsável por algum diferencial entre o humano e o animal mesmo quando aquele raciocina errado – mas o faz; mas apenas um puxão e Emílio Meister teria de trocar qualquer pensamento sobre a morte pela morte do pensamento.
Eis o começo de O Beijo de Schiler, romance do curitibano Cezar Tridapalli, vencedor do prêmio Minas Gerais de Literatura. Sem pausa alguma, é a história contada por Meister, um bem sucedido escritor, porém, perto do nada. A bala estava muito próxima dele, e sua memória (e a leitura) viaja para uma semana antes do incidente. O risco anterior era mais sadio, perder (mais) uma discussão para Vitória, sua filha, ou empatar com Eugênia, a esposa, ao invés de uma vida para um fedelho.
E ele olha o menino com o revólver na mão: talvez vinte e um anos, a idade logo alcançada pela filha. Tratada como personagem secundária, sua presença não era tão fundamental no enredo do gabaritado Meister. Enquanto o romance progride, o protagonista relembra as palavras dela:
“Nasci orfã de um pai que se trancava para escrever sobre as angústias da humanidade, ele próprio uma antena da raça – sim, eu lia todas as resenhas sobre teus livros e tuas entrevistas, fui conhecer um pouco do que você representava por elas – ouvidos atentos aos ruídos humanos que só os iluminados de sensibilidade extra podem ter, mas sem ouvidos para as unhas de uma menina que arranhava a porta da biblioteca de casa, onde o escritorzinho de merda chafurdava em meio aos jornais de resenhas elogiosas escritas em mil línguas diferentes” (p.77)
E se lembra de Eugênia, a esposa oito anos mais velha que si, experiente de vida e intelecto, então uma potência – poderia ter sido muito mais brilhante, exceto por tê-lo aceitado como marido. Coisa pouca a lhe sugar energia antes abundante e, no tempo presente do enredo, direcionada para alguma pesquisa sobre religião (motivo recente de briga entre Emílio e Eugênia) e um projeto envolvendo a interação entre pessoas de distintas classes na Rua Schiller, de Curitiba. Parece estranho para o protagonista, mas assim o são muitas ocupações alheias, tendo ele colaborado para elas (ou não).
A esposa nada estranha, pois diante do menino com o revólver em mãos, Eugênia age quase como se ele não estivesse ali. Ok, um rapaz porta uma arma e ora a aponta para a cabeça do marido ora a esconde no bolso, estou saindo, não se comporte mal – e ela podia ter falado isso para o marido ou para o meliante.
E o rapaz passa a conviver com Emílio Meister de forma muito peculiar, como uma ameaça não concretizada – a vigilância cerrada nos cômodos da casa, um canto para dormir, as ordens para viver como se não houvesse arma ali e o rapaz fosse um sobrinho, e breves coerções pela presença do revólver, embora Emílio Meister tente entender as motivações do bandido e até simpatizar com ele, em uma estranha variação da Síndrome de Estocolmo.
Em meio a isso, ainda há o próximo romance a espera de continuidade. Há um protagonista no próximo trabalho do premiado escritor Meister, o cara que caiu nas graças da imprensa com um romance ruim, teve a imagem explorada até cansar, palestrou país afora em eventos literários (some essa e aquela mesa, olhe esse dinheiro!), virou referência graças ao grosso apêndice de páginas encadernadas, aquele ba tizado de livro. Uma profissão, um cenário, a formação do personagem, esses amáveis mistérios… tudo bem, o portador da arma deixa o escritor em seu ofício por um breve espaço. Talvez até caiba um beijo na ficção dentro da ficção.
O Beijo de Schiller é o segundo romance de Cezar Tridapalli, cuja primeira publicação foi Pequena Biografia de Desejos, lançado pela 7 Letras em 2011. Ambas obras tem personagens relacionados a livros, mas não se desmancham em divagações gratuitas sobre o fazer literário. Em Pequena Biografia há o processo de formação de um leitor – e por extensão possivel escritor, mas longe de um protagonista oriundo de um ambiente onde o livro fosse acessível. Em Schiller, Meister disserta (mentalmente) sobre suas ficções e em especial sobre sua realidade, devido a imposição desta em seu cotidiano, e é possível ter alguma simpatia por este personagem apesar de suas contradições. E junto a ele, descobrir o final desta história intrincada após passear por suas entrelinhas de asfalto.
O Beijo de Schiller
Cezar Tridapalli
Editora Arte e Letra
274 p.
Curitiba, 2014
Fonte das fotos: https://cezartridapalli.com.br/?p=1430
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