A revista pernambucana de cultura Continente traz extensa análise de Vertigem do chão, escrita pelo escritor gaúcho Reginaldo Pujol Filho. Trata-se de uma das análises mais exaustivas acerca do romance. Abaixo, o texto na íntegra, cujo original pode ser lido aqui.
DOIS PERSONAGENS E DOIS PERCURSOS EM ‘VERTIGEM DO CHÃO’
Cezar Tridapalli dá à luz obra corajosa, que narra dois percursos em duas vidas
TEXTO REGINALDO PUJOL FILHO
29 DE MAIO DE 2020
O escritor Cezar Tridapalli é autor também de ‘Pequena biografia de desejos’ e ‘O beijo de Schiller’
[conteúdo na íntegra | ed. 234 | junho de 2020]
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1) Numa época em que a morte do autor passa longe de ser unanimidade e se veem tantos livros exercitando um realismo baseado não exatamente no esforço mimético, mas na verdade ou autenticidade entre o que é narrado e quem escreve o que é narrado, Vertigem do chão, de Cezar Tridapalli, surge como ponto fora dessa curva. Neste cenário que tem evidenciado obras depoimento, testemunho ou que fazem enfrentamentos frontais de realidades de autoras e autores – algo que responde a uma urgência de nossos tempos, vozes e experiências inéditas abrindo espaço, multiplicando perspectivas, discursos –, Tridapalli arrisca-se num movimento lateral.
Modo diferente de se expor: exponho-me não ao desnudar o que vivi, mas ao imaginar outros tão distintos e distantes de mim. É o jogo perigoso a que ele se dispõe e expõe ao narrar dois percursos, talvez dois parênteses, em duas vidas: recortes de seis meses da vida de Leonel, dançarino contemporâneo, gay, mestiço, que vai de Curitiba a Utrecht em busca da realização como artista; e os mesmos seis meses de Stefan, corredor e professor de educação física, gay, que vai de Utrecht a Curitiba para fugir de um trauma. O investimento nesses protagonistas e no entorno que os envolve e também expele (a amizade de Stefan com o segurança haitiano Desimond; a de Leonel com a professora marroquina Fadilah, entre tantos encontros e memórias) exige exercitar pontos de vista, linguagens, visões de mundo muito distintas entre si – e, imagino, do próprio autor.
Ao contrapor discursos e olhares – em geral muito críveis – sem adotar explicitamente um ou outro, Vertigem do chão nos desloca constantemente e oferece lentes alternativas para o que passa no livro e fora dele. Evidente: não é novidade o que faz Tridapalli, mas tem gosto de diferente no cenário atual. Usar literatura, ficção, imaginação (e pesquisa, parece haver muita pesquisa na obra) para investigar e tentar sentir outros: corpos, espaços, tempos, modos de pensar, estar e ver o mundo. Fazer ficção e com ela oferecer perspectivas sobre a realidade, assumindo todos os riscos da eterna utopia de tentar colocar-se, mesmo que parcialmente, sob outras peles. Mas fosse essa a marca de Vertigem do chão e talvez eu não estivesse falando dele aqui.
2) Interessante notar que a multiplicidade da obra não se dá através de um mosaico de narradores. Surge numa costura delicada, discurso indireto livre, a voz condutora que se multifaceta orquestrando uma profusão de vozes. Em vez de um autor regendo vários narradores, uma espécie de narrador homem-banda ou DJ que vai de uma voz à outra ao sabor da narração.
Assim como os personagens estão em trânsito (de um país a outro, uma realidade a outra, nos mapas das cidades profundamente explorados no texto), transitamos nós por diversas consciências, às vezes com tal sutileza que podemos não perceber o fluir de uma voz a outra, de uma gramática pessoal a outra. Mas está lá, no “piazão” surgido numa frase, o emergir da fala curitibana.
E “uma arte não hierárquica, todos os membros atores e autores, (…) não ao virtuosismo técnico e sim às questões suscitadas e resolvidas no próprio corpo” evidencia o jargão das artes conceituais e performáticas. Discurso conceitual que pode fluir para “Tanto tempo maldizendo o pé pronado – anos fortalecendo o músculo vasto medial oblíquo para estabilizar a patela da região medial da coxa” e a objetividade da preparação física, ou para trechos que marcam o pensamento do conservadorismo e racismo holandês, ou o conflito da desenraizada professora muçulmana, ou a homofobia reinante entre machos alfa brasileiros. Talvez possa se dizer que Tridapalli transita por linguagens para nos oferecer o estranhamento do deslocamento que seus personagens experimentam não só entre lugares, mas entre euforia, medo, ansiedade e desencanto.
3) Não há só uma metáfora possível em Vertigem do chão. Deslocamento, sim, é uma delas. Pode-se dizer que o livro é uma transição. Passagem entre dois momentos dos protagonistas.
Mas há também o corpo. Físico e simbólico. Não à toa, os protagonistas vivem intensamente seus corpos na dança e na prática da corrida. Dualidade na relação com o corpo que já nos oferece duas leituras: Leonel reflete incessantemente, investiga “o prazer de entender o corpo na dança como a um só tempo objeto e sujeito”. O corpo de Leonel: subjetividade, espaço de improviso e descoberta. Já Stefan tem no corpo a máquina sempre em aperfeiçoamento. O corpo tem função: percorrer e chegar com eficiência, “se algo podia estragar o humor de Stefan durante uma corrida, era o sinal de GPS perdido. Caía por terra a exatidão das distâncias e com ela o pace”.
Corpo, porém, é metáfora ampla: fala de todos nós. Leonel está em um museu de Utrecht com Fadilah.
Discutem imigração, fechamento de fronteira, rechaço ao imigrante. Ela diz que “se o prefeito fosse mesmo tão iluminista, poderia, a rigor, perguntar quem disse que o mundo sempre teve fronteiras. Tão iluministas que eram os holandeses, por que não faziam valer o pensamento de Rousseau, que amaldiçoou o primeiro sujeito que pôs uma cerca em volta de um pedaço de terra”.
Fronteira: muro, parede, cerca. Fronteiras físicas e mentais. O corpo como fronteira é imagem que se reforça nessa leitura. Cada corpo vai revelando pequenas cercas, defesas, discretos não ultrapasse: Leonel e a vergonha da cicatriz provocada pelo pai homofóbico; Stefan e o pânico e a depressão; e os preconceitos – a mente faz parte do corpo, não está fora dele – que escapam personagem a personagem. O corpo que é cerca e afasta, igualmente nos aprisiona em pequenas ideias. Corpos como fronteiras, como cercados que nos impedem de sair na direção do outro, do estranho. Reconhecer meu corpo diferente do outro é fonte inesgotável de discriminação, injustiça e opressão (de brancos com negros, europeus com muçulmanos, migrantes de países desenvolvidos com migrantes de países periféricos, ricos com pobres) e de rechaços ao longo do livro. “O corpo – real, capaz de afetar outros corpos, perigoso.” Cerca viva.
4) “O holandês Stefan Bisschop e o brasileiro Leonel da Silva estão sentados no mesmo banco em frente ao chafariz de águas desmaiadas da Praça Santos Andrade, no centro de Curitiba. A distância entre eles não pode ser medida em centímetros. É de seis meses.” Entre tantas imagens e recursos técnicos que trazem potência narrativa e simbólica para Vertigem do chão, talvez o mais inquietante se anuncie nas linhas acima. É o início do livro e já sugere uma relação constante entre espaço e tempo. O tempo assume função de espaço no romance. O tempo é um lugar desejado ou desprezado.
Há um jogo de espelhos invertidos entre Leonel e Stefan. Quase uma troca de lugares. Se, nas primeiras linhas de uma espécie de prólogo-epílogo (narra o início de uma das jornadas e o fim de outra sem apontar qual é qual), lemos que os dois estão separados por seis meses – tempo como régua –; nos capítulos seguintes, eles passam a viver em sincronia cronológica: quando Stefan parte da Holanda para o Brasil, Leonel parte do Brasil para a Holanda. Quando Stefan chega no hostel em Curitiba, Leonel chega à casa que o abrigará em Utrecht. Concomitantemente, porém, em diferentes fusos e momentos. Mas o ponto central é: ao viajarem, não estão deixando um país, uma cidade. Querem é sair de um tempo: do presente e do passado onde se sentem estrangeiros. “O futuro era o único lugar possível para a fuga.” Embora a 10 mil quilômetros um do outro, dividem um espaço cuja matéria são os segundos, minutos, dias.
Essa estrutura de tempo compartilhado entre personagens em latitudes diferentes traz um desafio para a escrita de Tridapalli: narrar a simultaneidade. A solução do autor, mais do que dar conta do problema, cria um novo significante. Converte a estrutura em mais um modo de relacionar tempo e espaço. Vertigem do chão estrutura-se sobre um recurso que faz lembrar Senhorita Cora, de Cortázar. Mas, no romance, o recurso assume forma própria, torna-se poderoso significante que espelha a relação dos personagens e reforça o que é narrado. Se Leonel e Stefan habitam o mesmo local em tempos diferentes e o mesmo tempo em locais diferentes; e se experimentam coincidências em suas decisões, no nível da escrita do texto ocorre o mesmo: habitam a mesma frase em tempos diferentes.
Uma explicitação disso é o trecho em que Leonel, perdido em Utrecht, procura a casa onde se hospedará, e para onde Stefan mandou suas malas de táxi e vai correndo do aeroporto ao hostel em Curitiba: “Tirou a mochila e tocou as palmas das mãos no chão, depois cruzou-a nas costas. O mundo acontecia diante dos olhos de Leonel, o alienígena. Demorou-se ali, esquecido do frio agora sem neve, até as orelhas começaram a doer demais. O suor escorria, calor e frio, enjoo, barriga vazia e o coração acelerado. Da corrida, era claro. Um estranhamento completo de tudo, o que estava fazendo lá, que lugar era aquele, não via um rosto desde o aeroporto”. Veja: O suor escorria, calor e frio, enjoo, barriga vazia e o coração acelerado é uma frase-passagem ocupada simultaneamente pelos dois personagens, mas em tempos distintos em seus enredos. O que é fim, na cena de Leonel, é início, na de Stefan. Assim como Curitiba é o que fica para trás, para um, e o horizonte que se abre, para o outro. Em seus próprios tempos, ambos habitam o mesmo espaço da página, mesmas palavras, manchas de tinta. Estão no mesmo tempo da leitura, em latitudes diferentes.
Frases-passagem como essa estruturam o texto e potencializam significados. E convivem com outro recurso que reforça o projeto estético. Em vez de coabitar uma frase, às vezes Leonel e Stefan se fundem numa pessoa: a terceira do plural: “Uma voz do outro lado do interfone disse algo que Stefan não entendeu, Leonel tampouco. Alguém no mundo que não fossem carimbos, pedintes, fantasmas ou portas com sensores daria a eles a garantia de que existiam. Interpelados pela pergunta-ruído, fariam sair algum fio de voz, som minimamente articulado que desencadeasse a ação”.
O tempo é um dos grandes eixos articuladores do livro. Ambos os personagens estão em crise com a passagem dos anos, a paralisia da vida em um tempo. “Em breve chegariam aos trinta anos e a maioria dos manuais dizia: começariam a perder massa muscular e ganhar gordura. Os quarenta centímetros da panturrilha de Stefan se transformariam em quê? Os oitenta centímetros enxutos da circunferência abdominal de Leonel? Tantos anos de cuidado com o corpo para que o corpo os levasse aonde mesmo? Quem eram na ordem do dia, no estado das coisas, na hierarquia do mundo?” Desejam fugir do passado e ir para o futuro. Mas, se possível, sem avançar demais no tempo do calendário. Ir para o futuro sem envelhecer muito. Mudar de geografia para fugir de um tempo.
5) Ainda sobre o tempo: Não há como voltar para casa, lembrança que o livro nos coloca. Não há como sair e retornar para o mesmo lugar, pois o lugar também é o tempo em que lá se estava. O tempo é um mapa, sugere-nos Vertigem do chão. Curitiba e Utrecht não mudaram de latitude e longitude. O Marrocos de Fadilah e o Haiti de Desimond permanecem nos pontos do globo. Mas mudaram de tempo. Já não são os lugares abandonados, serão espaços por reinaugurar, se houver a tentativa (frustrada) do regresso.
6) E essa vertigem, a Vertigem do chão? A epígrafe de Terry Pratchett sugere uma chave: “‘Eu não vou montar em um tapete mágico!’, ele sussurrou. ‘Tenho medo do chão’. ‘Você quer dizer de altura’, disse Conina […] ‘Eu sei o que quero dizer! É o chão que nos mata!’”
Mas é impossível não fazer outras leituras. Leonel e Stefan, a dança e a corrida, recordam que nossa relação com o chão é de constante desequilíbrio. “Correr é alternar equilíbrio e desequilíbrio, um pé brevemente plantado lança o corpo para o voo enquanto o outro se joga para a frente em busca de sustentação” e “a dança lidava com a relação dialógica entre equilíbrio e desequilíbrio”. Dançar, correr, o simples caminhar: só existimos em desequilíbrio. Equilíbrio é estar parado, estável. Intervalo entre dois desequilíbrios? Nossa relação com o chão e o mundo seria a constante vertigem, eterno desequilíbrio. O único corpo em perfeito equilíbrio será o corpo morto, onde o movimento cessou, nada se desloca, o ar não vai e vem, o sangue não pulsa? Talvez a grande ilusão (vertigem) dos protagonistas, mesmo vivendo o desequilíbrio como prática diária, seja buscar um equilíbrio permanente.
Outro chão, outras vertigens: a inevitável relação com o chão a que não pertenço: a casa alheia, o país desconhecido, a calçada esburacada a 10 mil quilômetros do calçamento perfeito de Utrecht. Como pisar um chão que me deixa inseguro sem ser notado. Quando piso o solo desconhecido, é inevitável a pergunta: por que é tão fácil perceber que sou estrangeiro? Será o modo como me desloco em constante vertigem, aprendendo a pisar este chão?
7) Uma última – mas não a última – proposição entre tempo, espaço, chão, vertigens: em um parque, Leonel dança um espetáculo solo, de olhos vendados. Não sabe se é visto. A pergunta: se ninguém viu, o espetáculo existiu? O livro nunca lido existe? O filme nunca visto? Há todo um clichê aí sobre a inevitável relação arte-público acontecer no outro. Há também uma discussão que lembra ideias conceitualistas colocadas nos anos 1960 por artistas como Lawrence Wiener e Sol LeWitt: em um resumo grosseiro, a obra de arte, para existir, bastaria ser pensada. A execução seria uma etapa dispensável. Nesse prisma, a performance de Leonel existiu. Se discordamos da noção conceitualista, a performance pode nunca ter havido.
Mas quero crer que essa discussão e a cena do livro trazem algo mais para pensar: parece que o livro subitamente se hiperpresentifica ao discutir a existência em relação. Embora lançado em 2019, Vertigem do chão pensa sobre 2020: nessa cena e nos encontros e rejeições entre seres sempre estrangeiros uns aos outros, sublinha o bicho relacional que é a espécie humana – para bem e para mal.
Escrevo este texto em pleno isolamento social. Populações inteiras de países como Itália e Espanha proibidas de sair de casa. Momento que decreta: mesmo quando não nos olhamos, falamos, reparamos e simplesmente nos aglomeramos em centros urbanos, estamos em relação. Sempre nos influenciamos. Não acabamos em nossos corpos. Nossos corpos, na obra de Tridapalli e na realidade, talvez sejam fronteiras maltraçadas e malprotegidas, facilmente invadidas por amor, medo, vírus. Ou talvez desejem ser invadidas pelo olhar, pensamento, curiosidade de um qualquer, como no caso de Leonel.![]()
REGINALDO PUJOL FILHO, escritor gaúcho, autor de Não, não é bem isso e Só faltou o título.







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