Publicado originalmente em 4/8/2011 no ?InterrogAção, o texto é de Emanuela Siqueira.
*
Uma das características mais marcantes da Literatura produzida hoje é justamente o bom uso do realismo do dia a dia — considerado outrora um objeto sem ânimo e interesse — como um contexto rico. O curitibano Cezar Tridapalli, em Pequena Biografia de Desejos (Editora 7Letras, 2011), traz a vida comum e seus personagens como forças motrizes para dentro do romance, dando mais sinais de como a literatura do presente vem rendendo frutos extremamente interessantes, alimentados pelo anonimato do cotidiano.
Desidério é um porteiro que leva uma rotina insignificante para a maioria das pessoas, o homem pega o mesmo ônibus todo dia — para quem mora em Curitiba, o famoso Ligeirão-Boqueirão — e passa inúmeras horas acordado, lendo e escrevendo. O personagem principal de Pequena Biografia de Desejos é uma espécie de anti-herói, só que sem nenhum tipo de glamour que esses personagens costumam ter, construido sob o perfil de homem comum visto pelos olhos do fantástico.
O protagonista se apresenta através das narrativas de suas próprias mazelas costuradas com a história de outros personagens que ajudam a dar forma na sua vida-ficção. A mãe que foge de casa, um pai que só existe fisicamente, um casamento sem o mínimo de amor e os sonhos de escrever livros tão geniais quanto os que passa as madrugadas lendo, são pequenas peças que formam detalhadamente o enredo da vida do personagem.
Desidério poderia ser um homem comum se os livros não o tirassem do marasmo do cotidiano. Sonhador, sua realidade — desde sempre urbana e crua pela ótica do realismo banal — sempre foi moldada conforme o lirismo dos livros. É o homem comum, sem ostentações, mas repleto de mecanismos que o tiram do conformismo e o colocam dentro de um realismo fantástico, um dos aspectos que introduz Pequena Biografia de Desejos como uma obra que se alimenta do contemporâneo sem precisar, em momento algum, ser confessional. Pelo contrário, Desidério não quer confessar nada, nem sabe usar as palavras faladas, ele suprime seus sentimentos e acredita que a sua real redenção sejam as palavras escritas e num livro só seu.
É principalmente a paixão e o desejo que movimentam a vida de Desidério. Além de ter um fascínio desmedido por livros — o homem chega a escrever trechos de livros na mesa da guarita — ele encontra Adele, uma professora de italiano, que alimentando um amor platônico involuntário, ainda o encoraja a escrever sobre todos os sentimentos que ele acreditava não possuir.
A narrativa de Pequena Biografia de Desejos é movida justamente por essa paixão e desejo literário que o protagonista desenvolve ao longo das suas leituras. O narrador faz uso de uma voz íntima que funciona como um off cinematográfico, apresentando a vida dos personagens com direito a flashbacks. A cada capítulo, novas histórias vão sendo apresentadas e costuradas ao mosaico que forma a grande biografia de Desidério. Sem as personagens — e suas insignificâncias detalhistas associadas a um e outro enredo literário — o protagonista jamais existiria e encararia com tamanho desejo a sua própria ficção.
O espaço onde circula o personagem é Curitiba, um ponto interessante se pensado sob a situação que boa parte dos romances contemporâneos se organizem em outras metrópoles do país. A Curitiba de Desidério é descrita pelo ponto de vista de um eterno transeunte que conhece bem apenas o bairro em que viveu, o trajeto que faz há tanto tempo de casa para o trabalho, e vice-versa, e claro, a Biblioteca Pública do Paraná.
A voz que Tridapalli faz uso é sufocadora, direta e repleta de referências, o que pode não agradar leitores receosos com o romance contemporâneo. Pequena Biografia de Desejos lembra obras ao estilo de Henrique Vilas-Matas, Saramago e o fantástico — mais moderado — das realidades latinas de Gabriel Garcia Màrquez e mesmo assim, mantendo sua própria construção. Há uma necessidade de respiração depois de cada capítulo na saga de Desidério, o que fez minha leitura ter contado com boas pausas entre um capítulo e outro, sendo que isso não é de forma alguma um problema e sim um ótimo processo de assimilação. Além disso, é bastante lírico e atual o discurso sem pausa e caótico da obra que, mesmo usando muitos recursos de linguagem contemporânea, mantém o ritmo romanesco clássico.
Pequena Biografia de Desejos nem de longe parece um romance de estreia. É uma ode — e isso é o que mais encanta — às paixões e desejos que os livros podem causar. É sobretudo, um romance sobre livros para leitores apaixonados.
Seguem alguns trechos do livro:
¨Qual a marca que o porteiro de um edificio deixaria no mundo? Pensara no livro que havia começado e, com estranho alivio, enfim lhe subiu à face a esperada sensação de tristeza autêntica, doída. Qual a marca que aquele cara que escreveu O deserto dos Tártaros deixara no mundo? Qual a marca que os quarenta e dois autores lidos por Desidério até ali deixaram no mundo, no seu mundo? A resposta lhe parecia evidente, óbvia demais; no entanto, sentia-se envergonhado e quase enfurecido por não saber o que responder, pois, ainda que dissesse que as obras desses autores fossem suas marcas, uma voz interna insistia em propor outra pergunta: mas para que servem essas marcas? Ora, para nos lembrar de que estamos vivos, de que o show tem que continuar, e que as ilusões devem continuar sendo alimentadas, e que precisamos continuar nos perguntando para que serve tudo isso.¨ (pg. 90 e 91)
¨Assim se arrastam os desejos humanos, às vezes céleres, sorridentes e fagueiros como crianças no campo ou propagandas de margarina, às vezes entrevados, cujos movimentos únicos parecem ser fasciculações involuntárias. De uma forma ou de outra, compreendidos todos os matizes possíveis nesse entremeio, estão sempre morrendo sem se terem satisfeitos.¨ (pg.218)
Deixe um Comentário