No início dessa semana, foi realizada longa entrevista sobre o Pequena biografia de desejos para o jornal de notícias on-line Jornale. A reportagem que foi a público pode ser lida clicando aqui, com uma reprodução parcial da entrevista concedida.
Abaixo, coloco a entrevista na íntegra:
JORNALE – Como surgiu a ideia de escrever “Pequena Biografia de Desejos”?
TRIDAPALLI – Sabe quando o dia-a-dia comezinho te engole? Você acha que tudo é prioridade, menos os teus grandes projetos de vida – esses sempre podem esperar. De repente, ir ao mercado é mais importante do que começar a planejar um livro (afinal, é preciso comer); aí os projetos de maior fôlego e realização pessoal ficam agendados para começar amanhã. Mas é que amanhã é sempre depois. O amanhã, quando for hoje, já guardará outros amanhãs sempre prontos para serem postergados. E com os projetos de vida, que são, digamos, de longo prazo, esse amanhã se transforma em mês que vem, em ano que vem, ou quando nos aposentarmos. E assim nos arrastamos muitas vezes, achando que o presente nos abafa, mas o futuro nos reserva grandes planos. Porém, nos esquecemos de que sonhar não basta, é preciso trabalhar para tecer futuros mais ou menos controláveis – já que o controle total é impossível. Então esse duelo entre a vida sonhada e a vida realizada sempre foi uma coisa que me chamou a atenção. Anos depois de ter lido O deserto dos tártaros, do Dino Buzzati, é que eu fui perceber por que eu tinha gostado tanto daquele livro. Sonho e realização podem conviver muito bem quando a segunda completa a primeira e começam a se retroalimentar. Mas quando o sonho fica patinando, e não sai disso, e a gente se contenta com ficar projetando, sonhando, imaginando, aí o imaginário vira prisão. Enfim, é esse debate todo que foi parar nas páginas do Pequena biografia de desejos. O conflito entre sonho e realização é que fica se contorcendo por lá. Essa é uma das chaves para se ler a obra. Acredito que haja outras ainda.
JORNALE – Quais motivos o levaram a escrever sobre a classe trabalhadora e o que o levou a esta abordagem psicológica?
TRIDAPALLI – Eu não daria essa ênfase ao fato de o personagem central ser de classe social humilde. Pequena biográfica de desejos não é, definitivamente, um romance político – pelo menos não no sentido panfletário ou de luta de classes. As lutas acontecem mais no âmbito individual, dentro de cada um. Aprendi muito com a literatura a imaginar que as nossas máscaras nem sempre correspondem àquilo que se passa dentro da gente. Isso não quer dizer que sejamos necessariamente falsos, hipócritas etc, embora tenhamos uma vontade atávica de mostrar ao mundo sempre o melhor de nós, escondendo pequenas e grandes incoerências embaixo do tapete. Desidério, o protagonista, parece que subverte um pouco isso, já que é uma pessoa melhor “por dentro” do que aparenta ser “por fora”. Então o que me interessou, mais do que criar um personagem de determinada classe social, foi quebrar alguns estereótipos que costumam colar uma identidade fixa a determinadas máscaras. Vamos pensar quais estereótipos rondam a nossa cabeça quando pensamos em um porteiro de edifício? “Porteiro de edifício” é um nome, um título, uma etiqueta grudada na testa, uma máscara, mas isso não diz nada – ou diz pouco – sobre o homem que se esconde por trás do rótulo. Por que não tentar investigar as profundezas desse homem, essa parte imensa do iceberg que fica submersa e que o distingue de todos os outros homens, porteiros e não porteiros? Desidério poderia ser qualquer rótulo, de qualquer classe social. Eu buscaria fazer a mesma coisa, independente de ser ele pobre ou não: trazer à tona características que o tornam singular e compartilhar essa experiência tão íntima dele com o leitor, que, espero, saia enriquecido desse encontro.
JORNALE – Quais são os seus autores preferidos? A obra de algum deles influenciou na escrita de “Pequena Biografia de Desejos”?
TRIDAPALLI – Embora se espere originalidade de um escritor, não vou conseguir ser original nessa resposta. Dos autores mais antigos, no Brasil eu ficaria com Machado de Assis; fora do nosso país, eu citaria Dostoievski. A agudeza na forma de prender a respiração, mergulhar nas personagens e emergir trazendo nuances até então veladas de comportamentos e modo de ser é algo que sempre me impressionou neles. Aliado a isso, existe um humor tão sutil, daqueles que a gente nem chega a sorrir externamente, mas que aciona um dispositivo interno que nos diverte. O próprio Dostoievski tem um romance menos conhecido chamado A aldeia de Stiepântchikov e seus habitantes que é divertidíssimo e faz um desfile de personagens que mostra bem como é a tal fauna humana (risos). O Triste fim de Policarpo Quaresma, do Lima Barreto, é também uma obra que me chama atenção por conter um tipo de humor que, no final, nos deixa constrangidos pelo fato de termos rido. É um personagem engraçado pelo idealismo tresloucado, mas que, à medida que seu triste fim se aproxima (não estou estragando a história contando ao leitor que ele tem um triste fim, não é? O título do livro já o entrega!), a gente engole seco aquela risada do início. Dalton Trevisan também me dá a impressão de que quer provocar riso e nos deixar mal por isso. Então, passando para autores mais contemporâneos, eu também não consigo ser original: Ian McEwan, Philip Roth, Enrique Vila-Matas. Recentemente, um amigo meu disse que o meu livro tinha muito a ver com A elegância do ouriço, da francesa Muriel Barbery. Fui ler. Gostei e realmente percebi alguns pontos de contato, principalmente pelo fato de haver uma personagem que desmonta os estereótipos que se podem ter em relação a ela. Enfim, claro que existem outros autores, mas esses foram o meu top of mind.
JORNALE – Algum movimento literário foi importante para sua formação como escritor e decisivo no desenvolvimento de seu estilo pessoal?
TRIDAPALLI – No início eu pretensiosamente pensava estar escrevendo um romance bem machadiano. Quando eu ia reler, aquilo que eu julgava humor fino se revelava uma patetice imensurável. Desanimei e vi que nem pra copiar eu servia. Fiquei muito tempo sem tocar no livro. Tempo demais, até. Quando o retomei, percebi o quanto escrever todo dia era importante e refazer aquela parte já escrita foi muito penoso. Escrever com regularidade é que te faz perceber como se desenvolve um estilo. Não tem nada de mágico no sentido literal do termo, mas é uma experiência muito singular ir percebendo o jeito como as frases vão se moldando e começam a esculpir o texto de um jeito quase automático. Não é um surto psicótico, mas, quando a coisa engrena, é como se uma voz interior te mandasse dar determinado ritmo para a frase, fazendo-a curtinha, outras vezes mais longa, te dizendo que não precisa daquela vírgula – por mais que a gramática normativa exija –, misturando a voz do narrador com o discurso direto do personagem. É algo meio indefinido que começa a ditar certa pontuação, certo ritmo. Algum escritor mais experiente talvez sorria com o canto da boca e pense “eu também não conseguia definir isso no início”. É isso mesmo, eu não consigo definir muito bem, mas não quero cair nessa de, por não conseguir explicar, acabar dizendo que “é algo mágico”. Então, voltando à pergunta, acho que não existe um movimento literário específico que determinou a linguagem, mas todos os autores lidos, de uma forma ou de outra, ficam dançando na cabeça da gente até que o movimento dessa dança os faça ficarem borrados, misturados e virarem uma massa informe e impossível de identificar nominalmente, individualmente. São todos ingredientes, mas o prato é a gente que faz.
JORNALE – Por que você escolheu ambientar a narrativa em Curitiba? Como você vê a cidade e seus moradores e qual o impacto dessa visão em sua obra?
TRIDAPALLI – Se não me engano, existe aquela história do José de Alencar, que escreveu O gaúcho sem nunca ter pisado no Rio Grande do Sul. Como eu escrevo o romance dentro de um registro realista, acho Curitiba uma cidade-personagem muito peculiar (embora ela sirva apenas de cenário ao meu livro), nasci e vivi sempre aqui, não tem por que a história se passar em outra cidade. Se a pergunta é por que escolher Curitiba, eu respondo com outra pergunta: por que não escolher Curitiba? Como a literatura, do meu ponto de vista, trabalha com a desconstrução do estereótipo, acho difícil caracterizar a cidade com uns poucos adjetivos, como se eles representassem o todo. Ah, o curitibano é assim, o curitibano é assado acaba dando poder muito grande a esse rótulo, como se fosse capaz de representar todo o indivíduo, todas as inúmeras subjetividades que estão sob o rótulo de “curitibanos”. O que eu sei é que gosto da cidade, o que não significa que só tenha elogios a ela. Gosto e torço para que seja melhor, muito melhor, para que não se transforme numa convergência dos piores defeitos das colônias com os piores vícios das metrópoles.
JORNALE – Qual é o público-alvo ao qual você direcionou a sua obra e por que escolheu dialogar com este determinado público?
TRIDAPALLI – Acho que qualquer pessoa alfabetizada, que tenha um pouco de intimidade com a língua escrita pode ser leitora desse e de outros livros. As leituras serão diversas, claro, uma vez que o leitor, além de retirar sentidos do texto, também coloca sentidos nele por causa do seu repertório de vida e de leitura. Espero que a obra dê margem a múltiplas leituras, sinal de que se trata de literatura e não de autoajuda, que precisa ter um sentido mais pronto, uma “mensagem” ou ainda uma moral da história. Já tive leitor de 14 anos e outro de 65. Até onde eu sei, esses foram os extremos. Talvez haja ainda outros mais jovens ou mais velhos, não sei. Tomara.
JORNALE – O que você espera despertar nos leitores com sua obra?
TRIDAPALLI – Uma mistura paradoxal entre identificação e estranheza é o que a boa literatura sempre me causou. Quebrar alguns estereótipos – ou usá-los para subvertê-los – é um exemplo de estranheza, de ruptura com as expectativas e modelos que trazemos em nós. Perceber que esse ser estereotipado ganhou vida interior, vida própria e que ela é cheia de sonhos, de projetos, de ruminâncias de sensações e pensamentos faz com que cotejemos a vida do personagem com a nossa. Algumas coisas rejeitamos, outras acolhemos. Esse processo é o que eu chamo de identificação. Nós temos um mundo de certezas e incertezas dentro da gente. O livro também traz isso dentro dele e, desse atrito entre mundos, saímos diferentes, modificados de alguma forma justamente por esse jogo de estranhamentos e identificações. Se Pequena biografia de desejos conseguir isso, ainda que de leve, eu já começaria a ficar satisfeito. Se o livro ainda conseguir fazer isso com – ou por meio de – alguns requintes de linguagem, melhor ainda.
JORNALE – Como você vê a literatura brasileira contemporânea e seus leitores? O que você espera para o futuro desta área artística e cultural e como você vê sua obra inserida neste contexto?
TRIDAPALLI – Tem muita coisa boa, né? Quando eu ensinava literatura brasileira, algumas vezes trabalhávamos identificando movimentos, tendências desde o final do século XVII, passando por arcadismos, romantismos, realismos e modernismos, engavetando as escolas literárias. Acho que é uma simplificação fazer esse tipo de classificação, mas ajuda em certa medida. Quando penso na literatura contemporânea, tenho curiosidade de saber como os historiadores vão se referir à época atual daqui a cem anos, se eles terão que simplificar e conseguirão identificar algum fio condutor temático/estilístico que dê unidade a tanta diversidade. Pena que não estarei mais aqui pra matar minha curiosidade. Mas é um leque tão grande de coisas sendo escritas, não? Vamos ver o que sobreviverá.
Quanto aos leitores, hoje tem mais gente alfabetizada, as classes sociais mais pobres estão tendo acesso à escola, o que é bom. Claro, a quantidade está sendo resolvida, mas a qualidade ainda é uma tristeza danada. E a literatura tem um quê de sofisticação que demanda certa habilidade do leitor. Não quero ser arrogante ao dizer que “só os bons” leem literatura, nada disso, só estou dizendo que, para ler certa literatura, existem recursos de linguagem que precisam ser dominados e pelos quais o leitor deve passear com desenvoltura. E isso, infelizmente, não é uma realidade no Brasil. No Brasil de qualquer classe social. Temos uma elite que também não é leitora, que é tosca mesmo, que não consegue se pensar em relação ao outro e ao seu país. E todos perdem com esse não acesso: os autores, os editores, livreiros, leitores que não são bons leitores etc. Mais uma vez vou usar o recurso do clichê, sem nenhuma originalidade: é a educação que pode melhorar esse quadro todo, para que a literatura não seja o privilégio de um gueto, de uma igrejinha com poucos seguidores. E a educação passa pela escola, mas vai além dela, com a facilitação do acesso aos bens culturais, inclusão digital, essas coisas todas.
Quanto à minha obra nesse contexto, que é a quarta parte da tua pergunta, eu a vejo com reserva e modéstia. Claro que quero ser lido, mas o meu temperamento sempre me conduziu para o caminho que evita deslumbramentos. Sou péssimo marqueteiro da minha obra, não consigo chegar nas livrarias e pedir para organizar bate-papos, sou tímido pra caramba na hora de falar formalmente sobre qualquer assunto, sempre vou pedir para dar entrevista por escrito (risos), essas coisas todas. Então, tudo isso faz com que eu nutra a expectativa de que a obra consiga transitar por si própria, a despeito do seu autor. Não é charme, não é jogo de cena. É uma inaptidão mesmo, que, de repente, até pode prejudicar a sorte do livro. Mas não vou conseguir mudar meu jeito de ser. Tomara que o Desidério consiga levar o livro adiante. Ou melhor: tomara que o narrador consiga levá-lo adiante, já que o Desidério é outro tímido que fala ainda menos do que eu.
A entrevista foi concedida a Cássia Lorenza.
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