ENSAIO
Janelas para o abismo
Ensaio analisa o risco de o Brasil ser dominado por um fundamentalismo que domina pelo medo
Meu lugar de trabalho um dia se chamou ‘dependência de empregada’. É um cômodo pequeno – portanto, um cômodo incômodo se pensarmos que ali deveriam caber uma cama, um armário, um banheiro. Para um escritório, porém, o espaço é bom. Livros ao fundo e, à frente, escrivaninha, computador. E uma janela. Então, duas janelas: a do computador e a que me mostra a cidade. Sou tradutor, passo boa parte dos dias nas duas janelas, ouvindo mundos. Na da tela já fui visitado por muita gente. O negócio é movimentado.
Já da janela que me mostra a cidade, do alto e de longe, tudo lá fora é lento, quase parado.
Mas no quase cabe muito. Falo de paisagem externa: a casa demolida, o edifício que desponta, a ferrugem na proteção da luminária – na demão às avessas que o tempo, neurótico-obsessivo, insiste em passar nas coisas. E há de se falar também da paisagem interna, das mudanças na malha da nossa constituição, que nos transformam nisso que somos. Eis a experiência da travessia. Paisagens, externa e interna, se determinam, íntimas e êxtimas.
A cidade que me chega, assim como o país a que ela pertence, revela-me o que eu não imaginava poucos anos atrás. Conheço os horrores históricos e domésticos. Entretanto, por não terem sido combatidos, geram horrores novos, filhotes vorazes. Na falta de vacina contra as mazelas sociais do país, eu vislumbro, já a olho nu, mutações no horizonte.
Traduzo atualmente “Porti ciascuno la sua colpa: cronache dalle guerre dei nostri tempi”, da jornalista italiana Francesca Mannocchi. Algo como “Cada um que carregue sua culpa: crônicas das guerras dos nossos tempos”. O livro faz entrar pela minha outra janela regiões onde o Estado Islâmico meteu não só o nariz ou o dedo, mas todo o corpo do seu fundamentalismo. E meus olhos ora miram atentos a tela, ora buscam soluções tradutórias – para o texto e para mim – mirando a cidade em que vivo, uma cidade brasileira. Vou e volto nesse movimento, voo até as terras do Oriente Médio e volto de lá trazendo olhos novos, que leem com as lentes não apenas dos óculos que uso para miopia, mas dos próprios fantasmas, essa cidade que, se ficamos desatentos, parece não mudar.
No início, achei que era a miopia quem fazia as janelas se fundirem.
Há pouco tempo eu via o Estado Islâmico com um estranhamento difícil de assimilar. O exercício de abstração era árduo demais. O jeito de pensar, agir, sentir não dialogava com meu universo de referências. Lembro-me, na época em que escrevia meu romance “Vertigem do chão”, de ter lido “Herege”, de Ayaan Hirsi Ali. A cada página, o queixo descia um centímetro. Era uma mistura de horror e incredulidade À certa altura de “Vertigem”, meu personagem brasileiro – Leonel – se vê hospedado, em Utrecht, na casa de uma imigrante muçulmana, a respeito de quem não sabe nada além da sopa de estereótipos que todos recebemos em porções variadas. Ele pensa:
Aquela mulher não deveria estar ali, mas muito longe, sob um sol que castigava ruínas, entre explosões e escombros, chorando a morte de crianças em algum massacre, rodeada por homens com turbantes empunhando metralhadoras, pedras, paus, em algum lugar quente e empoeirado do mundo.
O que era tão distante em termos de geografia e realidade tem se entranhado na realidade brasileira. Exagero?
Irracionalidade obscurantista
De volta ao presente, o livro de Mannocchi me interroga: o fundamentalismo – que tratarei aqui sem distingui-lo do fanatismo –, uma vez instalado com sua estrutura monolítica, pode ser afetado por fissuras que permitam infiltrações de dissonância, de dúvida?
Não é isso que, incrivelmente, temos também nos perguntado no Brasil? Há limite, haverá um momento em que a irracionalidade obscurantista encontrará um muro onde se deter?
Em uma das passagens do livro-reportagem de Mannocchi, encontramos Abudi, 12 anos, que, enquanto falava,
cruzava nervosamente o polegar e o indicador da mão esquerda, o movimento dos dedos ficava mais brusco quando contava as violências que havia testemunhado. “A primeira execução foi terrível. Três rapazes degolados na praça, a golpes de espada. A segunda também foi feia: um rapaz jogado de um prédio, acusado de bruxaria. Mas a terceira que eu vi, a de Mourad, foi a pior. Não era a mais violenta, porém era a mais próxima de nós. Ou foi a pior porque estávamos nos acostumando, era o que papai falava. Dizia: ‘Meu filho, não se acostume’”.
Não se acostume.
É delírio paranoico ver as duas janelas se aproximando? Minha incredulidade de outrora, que me fazia escrever exclamações e interrogações desconfiadas à margem do livro de Hirsi Ali, desapareceu. Aproxima-se o tempo em que, no Brasil, teremos oficialmente o fundamentalismo trevoso – vou manter a redundância –, que domina pelo medo, que ameaça o espaço subjetivo das pessoas, que se impõe pela invasão violenta de seus corpos.
A vida de Abudi já foi muito semelhante à de algumas crianças que conhecemos. Ele conta:
Antes da chegada do EI eu estava no quarto ano, o meu professor preferido era o Younes, e eu gostava também do diretor Qusai. Os meus melhores amigos eram Khaled, Muhammad, Ahmad e Yussef.
(…)
Daí chegou o EI. E na escola as letras do alfabeto passaram a ser usadas como exemplos para dar o nome das armas: P para projétil, H para howitzer (…). Em um dos textos que usavam para nos ensinar matemática estava escrito: “se uma criança explode a si mesma em meio a um grupo de vinte pessoas e morrem quinze, quantas pessoas restam vivas?”. E daí nas escolas havia as crianças dos milicianos, os seus filhos, vestidos de soldados como os pais, e armados. Tentavam convencer as outras crianças a jurar fidelidade ao Califa.
Hoje, consigo o que não conseguia há menos de 10 anos: entrever em um livro didático brasileiro problemas matemáticos que falem em explodir comunistas (esses fantasmas incorpóreos que encarnam em qualquer um que proponha marcos civilizatórios de convivência), gays, trans, feministas, negros, pobres, presos. É a escola sem ideologia. Consigo ainda ver em boa parte dos meus conterrâneos a saliva a escorrer no canto da boca.
Mannocchi segue seu relato: depois de ocupar a cidade de Sirte, na Líbia, o Estado Islâmico finalmente sai derrotado. Como a libertação era recente, marcas da presença do EI ainda se faziam ver. Caminhando pela cidade destruída:
havia ainda dois cartazes do Estado Islâmico. O primeiro convidava os jovens a rezar, o segundo mostrava um kalashnikov e um texto que dizia: “se você nos trai, trai a sua família” (…). Nos hospitais de campanha chegavam crianças desidratadas e aterrorizadas. Os médicos perguntavam onde estavam os pais. Elas respondiam: “Estavam lutando contra vocês”. Os mais perturbados gritavam para os médicos e para os enfermeiros que eles eram infiéis e acabariam no inferno.
O fanático faz uma troca. Ele abre mão de si, afinal, é custoso carregar o peso de ser sujeito e abrir-se para a dissonância. Então deposita a existência nas mãos de uma força superior à qual se liga verticalmente. A chance de se deparar com o desejo errante é trocada por um caminho unívoco – sem equívoco nem errância – que dá segurança e livra de dilemas.
Fanatismo e psicose
Se um fanático fundamentalista se sentar no sofá de sua casa – ou deitar-se no divã – e pedir para que você aponte os motivos pelos quais ele deveria mudar, o que você faria? Nascemos todos nus, de roupas e discursos, mas fomos agasalhados com ambos desde muito cedo. Para quem estrutura a vida psíquica eliminando cisões internas, insinuar a dúvida é perigoso. Em algum sentido, o fanatismo se assemelha à psicose: qualquer rasgo no tecido do discurso montado representa a possibilidade de um surto, de uma violência contra si mesmo ou contra o interlocutor.
Sempre há inimigos no horizonte do fanático, que, diante da incapacidade de dar linguagem à dúvida, dá lugar à passagem ao ato, em geral violento. Sendo assim, o hipotético pedido do fanático no sofá da sua casa não passa de um exercício bastante irrealista, a menos que ele dê um tom sarcástico, zombeteiro à solicitação que faz. Jamais lançará mão de um pedido assim como se estivesse interessado em “blá-blá-blá, entender outra forma de pensar blá-blá-blá e cotejá-la com o meu modo pessoal de entender a vida blá-blá-blá a fim de, por meio de encontros dialéticos e dialógicos blá-blá-blá, tornar mais rico e complexo o meu ser blá-blá-blá”. Vai é gargalhar com os olhos estalados.
Mannocchi está preocupada com as crianças, filhas dos soldados do Estado Islâmico, e pergunta a Rodi, um líbio que a acompanha:
“O que você acha que se deve fazer com os filhos do EI, Rodi?
“Mataremos o máximo possível deles, o que eles vão fazer?”, respondeu com tranquilidade. “O Iraque certamente não tem recursos e provavelmente nem vontade de salvar esses meninos. Não há projeto a longo prazo para que se livrem da lavagem cerebral que fizeram neles, por isso correm o risco de se tornarem piores do que seus pais, além disso ainda serão estigmatizados e rejeitados por todos”.
(…)
Ele estava me dizendo: é fácil para você (…) pensar sobre as categorias de bem e de mal, de perdão e de castigo, mas aqui existe a guerra e os julgamentos são mais simples, as diferenças perdem a sutileza e quando perdem a sutileza geralmente o mal vence.
Rodi vai além: depois de dizer que tais crianças, se viverem, crescerão estigmatizadas, afirma que esse estigma se tornará uma identidade em torno da qual se unirão para formar novos grupos cada vez mais embebidos no ressentimento, na revolta, no fanatismo.
No Brasil, termos como supremacia branca, milícia, armamentismo-cristão, narcopentecostalismo entraram no vocabulário e no imaginário. Trazem consigo ódio, ameaça, violência. O fundamentalismo boicota a golpes de palavras e de tiros toda busca por discernimento, toda tentativa de organizar acordos de convivência em que se possa tecer a vida – não a morte – a partir da apropriação subjetiva do desejo. Mas para lidar com o desejo, é preciso se haver com a falta e com a lei que todo desejo implica.
Por isso, a dúvida é salutar, porque faz se abrirem lacunas no sujeito, e lacunas são espaço movente, por onde se pode transitar, mudar, deslocar-se.
A dúvida que habita o não fanático é fruto da tentativa de não alienação irrestrita à figura de um Outro. Por mais inevitável que seja carregarmos em nós as marcas dos que nos formaram, a separação desse Outro nos torna mais propensos a saber qual é o nosso desejo e a não fazer eco ao desejo do Outro.
Alienar-se ao Outro significa andar com as pernas dele, ver com os olhos dele, falar com a voz dele. É fazer-se integralmente objeto desse Outro.
Do sofrimento à violência
No fanático, portanto, a dissonância traz muito sofrimento. Que pode gerar violência. Se a dissonância for interna (duvidar de si mesmo, ou do discurso que habita esse si mesmo na verdade tão Outro!), pode-se gerar autopunição, culpa. Se a dissonância for externa, do vizinho, de qualquer outra pessoa, pode-se gerar agressividade verbal e física.
A partir daí, vêm-me à cabeça alguns silogismos curiosos, dos quais ficamos reféns algumas vezes.
Se:
Toda liberdade de expressão deve ser respeitada.
Mas:
Fulano se expressa atacando a liberdade de expressão.
Logo:
(a) Fulano deve ser respeitado; afinal, está se expressando livremente
(b) Fulano não respeitou a premissa maior, então não merece ser respeitado
Se:
Precisamos ser sempre tolerantes.
Mas:
Fulana foi intolerante.
Logo:
(a) fulana precisa ser tolerada; afinal, precisamos ser sempre tolerantes
(b) fulana não precisa ser tolerada, pois infringiu a premissa maior
A resposta do fanático aos silogismos será, sem sutilezas, a que mais lhe interessa, a que mais lhe convém, a que mais agrada ao Outro que fala nele. O fanático não está interessado em implicar-se subjetivamente. Ou não consegue.
Fico aqui tentando compor dúvidas que me assaltam, expor posições que me preocupam, dão medo, angustiam. Trata-se de um convite à interlocução, um pedido de ajuda para que a elaboração encontre no outro – agora em letra minúscula – pedaços de discurso que contribuam para algum sentido provisoriamente organizador.
Do fundamentalista, porém, não sai convite, não sai pedido.
No fundamentalista não há escuta.
O fundamentalista não é poroso, não absorve, não faz circular sangue inédito pelas entranhas. É bloco de concreto muito armado. É bloco de notas, escritas pelo Outro.
Volto a pensar em Abudi, esse menino que eu sempre preferi acreditar que só existia nos rincões do fim do mundo – o terraplanista que existe em meus preconceitos me saúda. Penso ainda na foto já clássica do urso-polar agarrado a um último pedaço de gelo que derrete.
E então penso finalmente nos abudis daqui, mas também nas crianças que já veneram armas e acompanham os pais em manifestações coalhadas de símbolos da alienação a esse Outro que mostra o suposto Caminho, a pretensa Verdade – mas não a Vida, para usar uma referência cristã. Eles têm um deus, um líder, uma bandeira: a diversidade lhes é intolerável, ela agride e se torna a pista mais evidente de que isso que poderia ser espaço de deslocamento, desejo, hipótese, encontro, não tem permeabilidade no corpo fanático.
O poeta Ferreira Gullar nos deixou, entre tantos outros legados, um aforismo clássico: “A arte existe porque a vida não basta”. Enquanto muitas vidas existem dentro e fora do sujeito de desejo, enquanto precisamos ler literatura para ganhar um pouco mais de vida e novas respirações, enquanto nos alimentamos de narrativas diversas para tentar simular experiências igualmente diversas, o fundamentalismo é a antiarte. Ele inveja, na esfera inconsciente, as vidas que não são a sua, por isso quer vê-las mortas. O já saudoso Contardo Calligaris esclarece: “A vontade de mandar nos outros aparece quando não conseguimos mandar em nós mesmos”.
Na esfera da consciência, contudo, um fundamentalista que esteja em qualquer uma das minhas janelas transformaria o aforismo de Gullar em “a arte não pode existir porque a minha vida me basta”, ela está em ordem, todas as narrativas fazem sentido do jeito como estão, nada pode ser revolvido. E como a vida dele é a certa, precisa transformar a vida dos outros na imagem e semelhança da sua. Todos espelhos refletindo a imagem ideal uns dos outros.
O problema é que esse paraíso fundamentalista não se apaziguará porque o estrangeiro, o estranho, o diferente, já tantas vezes degolado e esquartejado, começará aos poucos a latejar outra vez. E um inimigo novo, feito de fantasia ou delírio, ganhará consistência. Ele será visto no bairro ao lado, e o fanático irá até lá matá-lo. Depois o inimigo será visto rondando o quarteirão. O fanático ficará à espreita, fará uma emboscada na madrugada e o matará. Até revelar-se a clara verdade: o inimigo é seu vizinho. E será executado. Duas noites tranquilas de sono depois, a epifania definitiva: o inimigo está dentro de casa. Será agredido, violentado, morto.
O fanático fez o que precisava ser feito e tomba exausto. Mas não descansará, logo ouvirá passos e vozes indistinguíveis. Vai até a janela, nada lá fora. Os passos e as vozes indistinguíveis persistem. Mas lá fora, só o silêncio.
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