“Less alone” é a resenha sobre Pequena biografia de desejos escrita por Arthur Tertuliano e originalmente publicada no blog O leitor comum.
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Num artigo do TheNew York Times, li as seguintes frases: “Think about it: I can love you because I want to feel less alone, or I can love you because I want you to feel less alone. But only the latter requires me to imagine a consciousness independent of my own, and equally real.”
Ela resumiria, mais ou menos, duas formas de encarar a escrita de romances atualmente. Respectivamente: uma em que o autor deseja se expressar, de forma a se sentir menos sozinho no mundo – com o devido auxílio dos leitores que com ele se identificam; e outra em que ele tem a intenção de que seus leitores se sintam menos sós. Além disso, afirma que só a segunda forma de escrita requer que o escritor se posicione no lugar do outro – imaginando-o, independente e real.
Voltaremos ao tema mais adiante.
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No dia 29 de março de 2011, K. me convidou para o lançamento do romance Pequena biografia de desejos. O autor tinha sido seu professor de literatura no ensino médio. O evento era em uma livraria charmosa daqui de Curitiba. Mas eu mal havia começado o curso de Letras e estava empolgadíssimo com a leitura da Ilíada de Homero. É a minha segunda aula favorita, disse no e-mail de resposta. De qualquer forma, sem maior interesse pelo livro, minha presença no evento seria apenas mais uma forma de ajudar a encher de pessoas o lançamento de um jovem autor paranaense. Praticamente não houve disputa entre o clássico e o contemporâneo.
Já no segundo semestre do ano, a disputa pendeu para o outro lado: perdi a primeira semana de aulas para estar presente nos eventos noturnos da Semana Literária do SESC-PR. No dia de que mais gostei, reencontrei Marcelino Freire (e comprei seu último livro para pegar um autógrafo) e revi muitos amigos. Despedi-me umas quinze vezes, mas sempre encontrava alguém novo e engatava uma conversa. Mais ou menos entre a oitava e a nona despedida, uma amiga chamou-me para falar com um escritor – pouco antes eu confessara que não tinha coragem de tentar a abordagem Tenho um blog literário e gostaria de ganhar um livro para resenhar. Ela já o havia convencido a me dar um exemplar de seu romance.
Não o reconheci pelo rosto, mas sim pela capa de seu livro. Prometi lê-lo, resenhá-lo e, caso não gostasse, enviar meu texto para o blog do Meia Palavra, ao menos. Publicar a resenha originalmente n’o leitor comum já diz alguma coisa.
[learn_more caption=”Leia mais”] Ah, a metaliteratura. Costumo amá-la, ainda que nem sempre funcione comigo. O abuso e o mal uso de certos recursos literários – ou a simples falta de um maior exercício da imaginação para diferenciar a persona (muitas vezes, o narrador) do próprio autor – me cansam às vezes. Sempre tento descobrir a razão para “acreditar” em determinado livro e em outro não, ainda que ambos utilizem expedientes muito parecidos, mas isso é bem difícil às vezes. Um exemplo. Vejamos o quanto de “mundinho literário” há em Pequena biografia de desejos (a lista não é exaustiva): * Personagem que quer escrever um livro [X] * Personagem que sofre ao escrever [X] * Personagem que é leitor voraz [X] * Personagem culto [X] * Citação de autores canônicos [X] * Citação de autores mais obscuros [X] * Citação de livro famoso com o qual o livro em questão possa ser comparado [X] * Dúvida a respeito duma parte do livro poder ter sido escrita por um personagem [X] Nenhum desses elementos é particularmente novo e nenhum deles é intrinsecamente um mérito ou demérito do romance. Livros que os contenham podem ser brilhantes ou não dizerem nada de novo. Como eu poderia justificar ter gostado desse romance e não de outros muito parecidos? Aqui me remeto à citação que abriu esse texto. O autor parece escrever para que o leitor se sinta menos só no mundo. E mais do que isso: para que o leitor tenha companhia e veja o “outro”, o autor imagina este (ou o estuda e pesquisa – não estou interessado exatamente no processo de criação literária) e o põe no papel. Tentarei explicar o que quis dizer com o parágrafo anterior. Há três personagens principais: um professor de literatura, uma mulher que estudou muito a literatura italiana e um porteiro de prédio – o protagonista. Este herda uma biblioteca fruto de um incêndio (ainda legível) no apartamento daquele, possui estranhos hábitos com relação às suas leituras – uns leem andando; ele anota seus trechos favoritos embaixo do balcão da portaria –, se apaixona pela bela moça que fala italiano e quer escrever um livro. Desidério é o nome do moço. No próprio romance, vemos certos caminhos mais fáceis, devidamente evitados. Para os que adoram um tom confessional – “ah, ele fala disso porque ele viveu isso mesmo” –, o professor de literatura poderia muito bem ser o protagonista da obra. Meio mau-caráter e pseudo-intelectual, ele é relegado a um segundo plano, no entanto. Além disso, o leitor poderia se identificar mais com a moça bonita, inteligente, viajada e cativante – e, assim, não sair de sua zona de conforto e distração: “Uma ratinha de biblioteca. Leitora de literatura desde pequena, teve uma longa fase da vida, da infância à juventude, na qual se incorporava aos personagens que lia. Durante algum tempo, caminhava pela casa como se fosse Alice; durante outro, como se fosse Emília; durante outro, G.H.; ora, Dorian Gray. Era uma espécie de Zelig da literatura. A brincadeira consistia em se fazer passar por personagem durante o maior tempo possível, o que, entre outras coisas, lhe custou a obrigação de frequentar psicólogos behavioristas durante quase seis anos”. Mas a moça, além de crescentemente intrigada (e interessada) por Desidério, também não é o foco da narrativa. Um best-seller apostaria nas outras duas figuras; a adaptação cinematográfica talvez resgatasse o terceiro elemento a fim de explorá-lo como alívio cômico. O protagonismo personagem mais simples, em quem não prestaríamos atenção na calçada ou no ônibus, causa certa estranheza. Mas, aos poucos, nos permitimos que nos identifiquemos com Desidério: tão diferentes e tão parecidos. Ele tá sozinho na portaria, lendo, enquanto você está sozinho em algum canto, lendo. O personagem, dolorosamente crível e real, faz companhia ao leitor. Vejamos, por exemplo, uma cena em que Desidério pega um livro: “O primeiro livro do novo acervo, que Desidério, depois de muito tempo, escolheu, foi O deserto dos tártaros, de Dino Buzzati. Chamou a atenção, mais do que o título e a curiosidade de saber o que poderia ser um tártaro – já ouvira a palavra, presente em propagandas de pasta de dente, mas não conseguia imaginar a história –, o fato de, no alto da capa de sua edição, estar escrito, em letras maiúsculas, GRANDES SUCESSOS DA LITERATURA INTERNACIONAL. Acima, ainda, o ícone de uma máquina de escrever, responsável por plantar de modo muito sutil, imperceptível, as primeiras ideias de também ele ser escritos, mas lançou-se em uma aventura imaginária e difusa. Ficava admirado por alguém conseguir tirar da cabeça – essa caixa minúscula – tanto assunto. Desidério não tinha nenhuma noção de enredo, personagens, trama. Eram palavras que já poderiam ter sido ouvidas, mas não faziam parte, nem de longe, do cardápio disponível para ele. A capa tinha fundo rosa e, debuxado, o desenho que mostrava uma montanha, em cima da qual havia um castelo. Abaixo da montanha imensa, no primeiro plano, um cavaleiro, montado, seguindo caminho. Se a capa já havia sido responsável por tantas digressões, Desidério ficou faminto pela história que a capa prometeu revelar, linha após linha, página depois de página. Se o cavaleiro da capa precisava de forças para subir a montanha e chegar ao castelo, também ele investira suas forças para singrar o mar de letras, imagem que Desidério adorava evocar, desde quando viu pela primeira vez o oceano de livros da Biblioteca Pública.” Talvez isso seja pouco para justificar que eu tenha curtido a leitura: um protagonista atípico no mundinho literário, essa vontade de conhecer a vida dos outros, que também podem se encantar com capas de livros e com o oceano de uma biblioteca. O livro é bem escrito, algo unanimemente apontado pelas críticas, a representação de Curitiba é tão boa quanto a de outro grande título paranaense que li no ano passado (Nós passaremos em branco, de Luís Henrique Pellanda) e é um bom romance de estreia – bom o suficiente para que fiquemos curiosos acerca do que o autor poderá escrever no futuro. E isso é o bastante para mim. Arthur Tertuliano [/learn_more]
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